“Colonialidade” é o termo usado para ilustrar que a colonização não acabou no processo de independência das nações: suas estruturas de controle permanecem vivas na sociedade contemporânea.
No currículo escolar, a colonialidade se manifesta por meio do eurocentrismo e da desvalorização dos conhecimentos de populações tradicionais — como indígenas e africanas — e de comunidades locais. Além dessa hierarquização de raças e saberes, há uma hierarquização de gênero, com inferiorização da mulher.
“Já ensinar por uma perspectiva decolonial ajuda a humanizar os povos racializados e subalternizados, reconhecendo suas produções intelectuais e científicas. Traz saberes dos movimentos sociais, étnicos ou ancestrais nas propostas didáticas, cuidando que eles não sejam esvaziados dos contextos políticos e das realidades nos quais foram engendrados”, explica o biólogo e professor da Universidade Federal do Norte de Tocantins (UFNT), Yonier Alexander Orozco Marin.
Outro benefício de uma educação decolonial está em trazer representatividade para estudantes não-brancos e periféricos, que não se reconhecem em uma narrativa onde os produtores de conhecimento são retratados como brancos e do norte global. Com isso, há a possibilidade de uma educação mais significativa. Também valoriza as leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatória a inclusão das culturas indígenas e afro-brasileiras nos currículos.
Orientações para uma educação decolonial
Para os professores que desejam praticar a decolonialidade na educação, a docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Suzani Cassiani indica buscar entender as contribuições dos saberes de populações tradicionais, locais e de grupos marginalizados para a ciência em geral.
“Utilize materiais e recursos educacionais que representem uma variedade de vozes e perspectivas. Busque materiais didáticos que incluam exemplos, estudos de caso e histórias relacionadas aos povos indígenas, afrodescendentes e outras comunidades marginalizadas. Isso ajudará a ampliar a visão dos alunos, a valorizar a diversidade e a promover uma educação antirracista”, explica.
“Desconstrua estereótipos e hierarquias, e incentive os alunos a desenvolverem criticidade em relação ao conhecimento científico, identificando vieses e considerando as implicações sociais, políticas e culturais da ciência”, completa Marin.
O professor também lembra que é necessário aos educadores se atualizarem constantemente sobre formas de ensinar um determinado conteúdo por uma perspectiva não-eurocêntrica.
“A educação decolonial é um processo contínuo de desaprendizado e reeducação”, justifica.
A seguir, apresentamos o “Especial educação decolonial”, uma lista de dez disciplinas do currículo escolar que podem ser ensinadas a partir de uma perspectiva decolonial. Confira!
Matemática
Os grafismos indígenas, os sistemas de contagem dos povos tradicionais, o frevo, o jogo de búzios, as tranças africanas, a mancala e os conhecimentos egípcios são algumas das ferramentas que ajudam a ensinar conteúdos matemáticos a partir dos saberes de diferentes populações invisibilizadas.
Língua inglesa
O ensino da língua inglesa por uma perspectiva decolonial ajuda o aluno a deslocar o olhar do chamado norte global e focar em outras culturas que possuem o inglês como língua nativa, caso de países como África do Sul e Nigéria.
O professor pode desmistificar o falante nativo de língua inglesa como sendo do norte global, homem, branco, heterossexual, cisgênero e de classe média. Para isso, vale trazer experiências de sujeitos tidos como subalternos, como trabalhadores domésticos; apresentar intelectuais indígenas e africanos; explorar músicas e de países africanos e caribenhos falantes da língua inglesa, entre outros.
História
Entre as dicas para um ensino de história decolonial está explicar aos alunos o que é apagamento cultural, não esconder a violência do colonizador e retirar o foco da narrativa deste, abordando as resistências negras e indígenas.
Ao trabalhar conteúdos eurocêntricos, como o feudalismo e Revolução Francesa, pode-se traçar paralelos com a realidade brasileira ou a vivência de outros povos no mesmo período histórico. Vale ainda apresentar a história pelo ponto de vista afrocentrado e trazer exemplos de mulheres latinas apagadas de narrativas históricas oficiais.
Educação física
A educação física escolar ainda é centrada em esportes e práticas corporais desenvolvidas principalmente no norte global, podendo o professor apresentar aos alunos práticas corporais de populações indígenas, quilombolas, ribeirinhas, africanas e periféricas.
Entre as possibilidades estão: discutir como a colonialidade influência a relação com o nosso corpo; apresentar o Jongo e outras manifestações da cultura quilombola; ensinar jogos e atletismo indígena; trazer brincadeiras africanas e afro-brasileiras; e explorar a capoeira e o funk como manifestações culturais.
Física
A reportagem explica como trazer a decolonialidade para alguns conteúdos de física. A lista inclui revisar conhecimentos atribuídos aos gregos antigos; abordar a engenharia do antigo Egito; apresentar os estudos astronômicos e a cosmologia – estudo da origem do Universo – de povos indígenas, africanos e asiáticos.
Pode-se ainda apresentar físicos, engenheiros e cientistas de populações marginalizadas; citar o calendário egípcio e discutir questões sociocientíficas — como a construção de um telescópio em terras sagradas de nativos havaianos sem o consentimento deles.
Química
Apresentar químicos negros e aprofundar saberes africanos e quilombolas são algumas possibilidades no ensino de química decolonial.
“Houve um processo de transferência de tecnologia africana para o Brasil durante a diáspora africana, principalmente nos conhecimentos de metalurgia usado pelas pessoas escravizadas”, destaca o doutorando em química pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Marysson Camargo.
Conceitos como separação de misturas, transformações da matéria e oxirredução podem ser trabalhados junto à discussão sobre a resistência negra frente à escravidão e ao racismo. Outra possibilidade é abordar como os indígenas se orientam no espaço e mensuram massa e volume.
Geografia
Pode-se resgatar autores que não são do norte global. Também, desmitificar a Europa como centro do mundo, considerar o conceito de raça como uma categoria de dominação, abordar modelos econômicos além do capitalismo e pensar conceitos geográficos pela perspectiva de outros povos. Além disso, é possível apresentar aos estudantes as contribuições econômicas da África.
Educação ambiental
Aborde saberes sustentáveis produzidos por comunidades tradicionais e periféricasda região onde a escola está inserida, assim como investigar os saberes das famílias dos alunos sobre uso de plantas tradicionais e formas de combater o desperdício.
Além disso, pode-se trabalhar vários aspectos do tema ‘alimentação’. “Construir uma horta vai além do plantio em si e o professor pode ampliar o debate sobre alimentação saudável, agrotóxicos, fome, soberania alimentar, desnutrição, consumismo, permacultura, adubação orgânica, compostagem, reaproveitamento de alimentos, etc.”, lista o doutor em Ensino, filosofia e história das ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), André Carneiro Melo.
Biologia
Alguns temas são possíveis de serem trabalhados na aula de biologia:sistemas de classificação e taxonomia de outras culturas; estudo de genética associado a questões sociais; conhecimentos ecológicos de populações tradicionais; alimentação relacionada à biodiversidade.
Também se destacam possibilidades de abordar as nascentes locais e suas histórias, a respiração anaeróbica e as bebidas de povos tradicionais. Além de racismo e célula eucariota, sistema endócrino e atletas transgêneros, cobras nas diferentes matrizes religiosas e etnobotânica.
Ciências
Neste podcast, a autora Bárbara Carine fala sobre uso de seus livros na escola que têm o objetivo de pensar as ciências a partir de narrativas que resgatam os saberes ancestrais africanos. Entre eles: “Descolonizando Saberes — A Lei 10.639/2003 no Ensino de Ciências”, “@Descolonizando_Saberes: mulheres negras na ciência” (2022)”; “História Preta das Coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de pessoas negras”, que foi finalista do Prêmio Jabuti 2022, e “História Pretinha das Coisas — as descobertas de Ori” (2022).
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