O currículo escolar de história carrega em sua estrutura a colonialidade. “Ele é construído por meio de uma narrativa centrada no desenvolvimento da Europa – o chamado eurocentrismo”, explica a mestre profissional em educação pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) Ana Carolina Simão.

“A Europa como centro de saber exclui culturas ou impérios americanos, asiáticos e africanos que possuem riqueza cultural e grandes realizações”, exemplifica a mestra em ensino de história pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) Andreia Costa Souza.Um exemplo está na própria divisão dos períodos históricos: Pré-história, Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. “No termo pré-história, por exemplo, subentende-se que nas culturas em que não há escrita também não há história”, acrescenta Souza.

“Como consequência, essa visão favorece conteúdos e temáticas que não nos pertencem e, ao mesmo tempo, silencia ou inviabiliza povos que foram colonizados e vivem o reflexo disso atualmente”, resume a mestranda em educação na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) Girlane Santos da Silva.“Na prática, ao abordar história medieval, dificilmente pensamos na África daquele período”, complementa Souza.

Nesse contexto, as leis 10.639/03 e 11.645/08 foram grandes conquistas ao inserir as culturas indígenas e afro-brasileiras nos currículos. “Porém, o lugar que ocupam no currículo ainda é ínfimo em relação à Europa”, lembra Silva.

Leia também: O que é contracolonial e qual a diferença em relação ao pensamento decolonial?

Aprendizagem significativa

Um ensino decolonial garante visibilidade aos povos conquistados e silenciados, como indígenas e quilombolas. “Conteúdos que são tratados de forma eurocêntrica podem ser repensados sob uma perspectiva decolonial. Por exemplo: após a Segunda Guerra Mundial, como estava a África?”, exemplifica Silva.

Promover um ensino decolonial exige pesquisa ativa do professor, já que os materiais didáticos não priorizam essas perspectivas. “A visão eurocentrica torna a história um estudo ‘chato’ na visão dos estudantes. Eles não se identificam com a temática e não se reconhecem no passado estudado por não verem ‘reflexos diretos’ em seu presente”, justifica Simão.

“Também perpetua a narrativa onde alguns sujeitos são ‘construtores da história’ e outros esquecidos. Porém, a luta dos apagados está mais próxima da realidade brasileira do que as batalhas de Napoleão Bonaparte, que têm mais espaço no currículo escolar”, completa.

Atividades possíveis

“Gosto de atividades nas quais o aluno assume um ‘personagem’ dentro da história. Por exemplo: ‘imagine que você é um morador do arraial de Canudos, narre o seu dia a dia e explique os motivos que o levaram para esse local’”, sugere Simão.

As redes sociais também podem ser exploradas e permitem um conhecimento construído de e para os jovens. “Pode-se construir um perfil sobre uma personalidade preta, latino-americana, entre outras, enfocando seus feitos”, sugere Silva, que também recomenda o uso de músicas, vídeos, livros e outras manifestações artísticas de autoria indígena e afro-brasileira.

A seguir, as pesquisadoras listam 10 orientações para promover um ensino de história decolonial. Confira!

1. Antes de ensinar um conteudo, reflita se há apagamentos

É preciso treinar o olhar para identificar se há outras perspectivas que não estão sendo contadas além da do colonizador.“A colonialidade privilegia um apagamento ou silenciamento de grupos, sociedades ou povos, em detrimento de uma história, de uma cultura ou de um conhecimento único”, lembra Silva. “Professores podem ir além dos livros didáticos e observar as fontes usadas e quais protagonistas elas apresentam”, diz Souza.

2. Não tratar o europeu como sujeito universal

“O europeu nos ofereceu uma matriz de conhecimento em que o saber é produzido por um sujeito aparentemente universal e neutro. Isso camufla o homem branco ocidental”, complementa Souza. “Estabelecer outras formas de construir conhecimento histórico envolve estabelecer novos sujeitos e novos objetos”, acrescenta,

3. Explicar o apagamento cultural

Ao contar a história do contato com os povos originários, o europeu traz em seu ponto de vista uma pretensão de superioridade e de dominação. “O escritor e filósofo indígena Ailton Krenak lembra que os povos originários já eram habituados a realizar trocas com diferentes culturas e não havia entre eles a imposição de um modo de ser e viver no mundo. Quando o europeu chega, os indígenas acreditavam inicialmente serem visitantes passageiros, que foram amparados quando muitas vezes chegavam doentes e sem habilidades para sobreviver em meio à natureza. Contudo, nesse novo contato, uma das partes não sabia conviver com o diferente sem se impor culturalmente”, lembra Souza.

4. Não esconder a violência do colonizador

“Ir além da narrativa eurocentrada e colonizadora requer um esforço para desvendar a trajetória de luta, violência e dor de grupos historicamente subordinados. Pode ser um relato ‘pesado’? Sim, trata-se de escravidão, exploração, mortes, tortura etc.”, explica Souza.

5. Retirar o foco da narrativa do colonizador

“No contexto brasileiro, por exemplo, podemos abordar a resistência dos movimentos indígenas em várias etapas históricas do nosso passado e presente. Já na história dos povos latino-americanos, podemos enfatizar não a colonização, mas os traços de sua cultura, de sua história e de seu crescimento”, sugere Silva.

6. Trace paralelos com a realidade brasileira

Ao abordar o feudalismo – fenômeno tipicamente europeu – Simão procura enfatizar as condições de vida dos camponeses. “Aponto questões como: existem camponeses no Brasil? Podemos pensar semelhanças e diferenças dessas duas classes?”.

7. Em conteúdos eurocentricos, apresentar também a vivência de outros povos

“Quando trabalho a revolução francesa, foco na ironia do ‘todo homem é igual perante a lei’, enquanto acontecia uma escravidão brutal no Haiti (colônia francesa) – primeiro país americano a conquistar a abolição da escravatura”, destaca Simão.

“Após a Segunda Guerra Mundial, como estava a África? As lutas anticoloniais e os movimentos de libertação são exemplos de conteúdos que podem ser abordados para dar protagonismo à história das populações africanas que passaram pela experiência do neocolonialismo”, acrescenta Silva.

8. Dê protagonismo aos alunos de grupos vulneráveis

“Um ensino de história decolonial pergunta: quem são esses alunos? Quais dificuldades eles sofrem ou tendem a sofrer devido ao seu ‘lugar social’? Como o estudo do passado pode ajudá-los a compreender as suas batalhas diárias, no presente? Como o estudo do passado pode ajudá-los a projetar um futuro diferente e mais positivo?”, destaca Simão.

“Do que adiantaria falar sobre os efeitos dos séculos de escravidão na estruturação do racismo no Brasil sem se preocupar com a contribuição de estudantes negros e negras? Não se colocar como detentor do saber é um modo de promover a decolonialidade e o professor deve ter a sensibilidade para não menosprezar a voz dos estudantes”, acrescenta Souza.

9. Traga a história pelo ponto de vista afrocentrado

Focar na participação da população negra escravizada e indígena ajuda a traçar uma visão mais completa e complexa da história brasileira. Uma alternativa é apresentar a série de podcasts Projeto Querino, que traz personagens pouco retratados nos livros didáticos.

10. Problematize o termo “descobrimento” do Brasil

“Muitos ainda falam em ‘descobrimento do Brasil’ e pouco em conquista ou invasão. É como se a história dos continentes não-europeus estivesse em suspenso até a chegada do colonizador”, complementa Souza.

11. Apresente mulheres latinas historicamente apagadas

Simão explica que as mulheres da classe trabalhadora e populares aparecem nos livos de história retratadas como escravas e vítimas da violência, não como líderes de batalhas e resistências. Assim, pode-se apresentar a história de mulheres indigenas, quilombolas, negras, trabalhadoras e operárias – tema da sua pesquisa de mestrado.

“Exemplos são Tereza de Benguela, Lélia Gonzales, Carolina Maria de Jesus, e Izabel Cerruti – costureira que organizou greves no final do século XIX”, compartilha. “Clementina de Jesus regravou um disco com canções do cotidiano de pessoas escravizadas e pode ajudar a falar sobre resistência”, pontua Simão.

Há, ainda, Maria Quitéria, da luta por independência, e Maria Margarida Alves – líder do sindicato dos agricultores de Alagoa Grande assassinada por coronéis. “Seu nome foi eternizado na história por meio da ‘Marcha das Margaridas’, maior manifestação de mulheres agricultoras da América Latina que acontece aqui no Brasil”, lembra Simão.

O professor pode também explorar a trajetória de mulheres populares na história da sua cidade ou estado, assim como falar sobre personalidades dos dias de hoje. “Eu costumo apresentar a Sônia Guajajara”, compartilha Simão.

Veja mais:

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Esse conteúdo faz parte do especial “Educação decolonial”. Para acessar os outros materiais com abordagem decolonial, clique aqui.

Atualizado em 12/09/2023, às 12h42.

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