Em cursos universitários, com destaque para os de formação de professores, a perspectiva decolonial já é uma realidade. A proposta é a de questionar a hegemonia de uma cultura eurocentrada. Mais recentemente tem ganhado espaço também o ponto de vista contracolonial. O termo foi cunhado pelo quilombola, poeta e escritor Antonio Bispo dos Santos, autor do livro “Colonização, quilombos: modos e significações”. Para ele, tanto a decolonialidade como a contracolonialidade têm funções importantes e um conceito não anula o outro.
“Se você foi colonizado e isso te incomoda, você vai precisar lutar para se descolonizar e descolonizar os seus. Isso é a função da decolonialidade. Eu sou quilombola, eu não fui colonizado. Porque, se eu tivesse sido colonizado, eu seria um negro incluído na sociedade brasileira. Então, no meu caso, eu tenho que contracolonizar – contrariar o colonialismo. (…) O colonialismo está aí vivente, cada vez mais sofisticado”, argumenta o escritor, conhecido também como Nêgo Bispo.
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Essa perspectiva para Bispo surgiu a partir de sua experiência como adestrador de animais. Segundo ele, ao exercer essa atividade, percebeu que a primeira ação de um adestrador é nominar e que quem nomina, domina. “Eu me dei conta que os colonialistas também faziam a mesma coisa. A primeira coisa que os colonialistas fazem é nominar lugares, pessoas, gestos. E aí eu percebi que a gente precisava ter uma guerra das denominações. Compreendi que a grande causa das maiores mazelas que nós temos no mundo hoje é o colonialismo. Se você tem um veneno, você precisa ter o antídoto – o contracolonialismo!”, reflete.
Oralidade
Definida como um ponto de vista que une os povos indígenas e os quilombolas, mais do que uma teoria, a contracolonialidade é centrada na prática e na vivência. Para o pensador, é uma forma de defender territórios tradicionais, símbolos, significações e modos de vida. Nesse sentido, a oralidade é valorizada, já que traz às formações nas universidades questionamentos e saberes que ainda não estão nos livros.
“A oralidade é a matriz. É a base pulsante. Então para falar de tudo isso precisa de quem? Dos povos indígenas e dos povos quilombolas. (…) Então o nosso povo entra pelas cotas e nós entramos pelos encontros de saberes e pelas outras maneiras e hoje nós estamos botando conteúdo. Ou seja, como era o debate nas universidades até recentemente? Você primeiro escrevia, para depois falar e, depois, você falava para escrever de novo. O que que mudou? Hoje, primeiro se fala para depois escrever e, depois, se escreve para falar de novo”, analisa.
Visão afro-pindorâmica
Bispo aponta a maneira de ver o mundo que chama de “afro-pindorâmica”— que une pontos em comum entre pensamentos e culturas dos povos originários e povos africanos — como uma boa forma de se introduzir o contracolonialismo na educação: “Eu digo que nós não somos afro-brasileiros, nós somos afro-pindorâmicos’. Porque quando eu falo de África, eu falo de um lugar. Quando eu falo de Pindorama, também não falo de um povo, falo de um lugar. Quando os colonialistas chegaram aqui, os povos originários chamavam aquele lugar aonde eles chegaram de Pindorama (terra das palmeiras).”
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Atualizado em 24/03/2023, às 09h54
Música: “Desert Planet”, de Quincas Moreira, fica de fundo
Nêgo Bispo:
Sou quilombola, eu pratico a agricultura, sou lavrador e na luta, no quilombo, eu hoje discuto regularização territorial; criação do nosso povo, a partir das nossas trajetórias, dos nossos ensinamentos e eu não sou um pensador, eu não sou um escritor, não sou um poeta, apenas. Eu sou tudo isso, dentro da luta contracolonialista.
Vivas, vivas, porque todas as vidas são necessárias! Eu sou António Bispo dos Santos, mas que eu consigo como Nêgo Bispo, Velho Bispo.
Vinheta: Instituto Claro – Educação
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
Cursos de formações de professores já têm trabalhado com uma perspectiva decolonial e questionado a hegemonia de uma cultura comum, de origem eurocêntrica. Isso se dá, por exemplo, a partir da revisão da literatura adotada. Neste episódio, você vai conhecer melhor uma outra forma de pensar e agir que começa a ganhar espaço também nessas formações. Autor de “Colonização, quilombos: modos e significações”, Nêgo Bispo revela como começa a pensar no contracolonialismo.
Nêgo Bispo:
Eu fui adestrador de animais para serviço e, adestrando animais, eu percebi que adestrar e colonizar é a mesma coisa. Mas como eu aprendi, na condição de adestrador, que o adestrador – a primeira coisa que ele faz é nominar, porque quem nomina domina. A arte de nominar é a arte de dominar, eu percebi que os colonialistas também faziam a mesma coisa. A primeira coisa que os colonialistas fazem é nominar lugares, pessoas, gestos. E aí eu percebi que a gente precisava ter uma guerra das denominações. Compreendi que a grande causa das maiores mazelas que nós temos o mundo hoje é o colonialismo. Se você tem um veneno, você precisa ter o antídoto – o contracolonialismo!
Então, contra-colonialismo é uma denominação pra nominar as nossas trajetórias: dos quilombolas e dos povos indígenas. É uma prática, é um modo de vida, é uma experiência de vida.
Marcelo Abud:
Bispo diferencia as perspectivas decolonial e contracolonial.
Nêgo Bispo:
Cabe a decolonialidade e cabe o contracolonialismo. Quem é que vai fazer a decolonialidade? É quem de fato foi colonizado. Se você foi colonizado e isso te incomoda, você vai precisar lutar para se descolonizar e descolonizar os seus. Isso é a função da decolonialidade.
Música: “Índios” (Renato Russo), com Legião Urbana
Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
Nêgo Bispo:
Eu sou quilombola, eu não fui colonizado. Porque, se eu tivesse sido colonizado, eu seria um negro incluído na sociedade brasileira. Então, no meu caso, eu tenho que contra-colonizar – contrariar o colonialismo. Tem umas pessoas que falam de pós colonialismo essas pessoas estão navegando. O colonialismo está aí vivente, cada vez mais sofisticado.
Mãos Vermelhas – Kaê Guajajara
Que ar você respira, senão o meu fôlego?
Que comida você come, senão a que eu dou?
Abra a sua mente, antes da sua boca
É o Brasil que ninguém vê
Marcelo Abud:
A valorização do coletivo e o destaque para a oralidade têm ampliado o conceito dos estudos contra-coloniais.
Nêgo Bispo:
A oralidade é a matriz. É a base pulsante. Então para falar de tudo isso precisa de quem? Dos povos indígenas e dos povos quilombolas. A chegada do povo quilombola, do povo indígena nas universidades como cotista fez com que hoje nós que não fizemos a academia – eu não fiz, eu estudei só até oitava série. Então o nosso povo ‘entraram’ pelas cotas e nós entramos pelos encontros de saberes e pelas outras maneiras e hoje nós estamos botando conteúdo. Ou seja, como era o debate nas universidades até recentemente? Você primeiro escrevia, para depois falar e depois você falava para escrever de novo. O que que mudou? Hoje primeiro se fala para depois escrever e depois se escreve para falar de novo.
Marcelo Abud:
O poeta e escritor quilombola aponta a maneira afro-pindorâmica de ver o mundo como um bom exercício para se trabalhar o contracolonialismo também na educação.
Nêgo Bispo:
Eu digo que nós não somos afro-brasileiros, nós somos afro-pindorâmicos’. Porque quando eu falo de África, eu falo de um lugar. Quando eu falo de Pindorama, também não falo de um povo, falo de um lugar, Por exemplo, um grande companheiro nosso da luta, que é o cacique Babau… Cacique Babau e o povo Tupinambá eles tiveram uma sacada extraordinária. Enquanto todo mundo diz reforma agrária, o que eles disseram? Retomada. É uma nominação diferente. Então, enquanto nós dissemos contra-colonialismo, os indígenas disseram retomada e nós estamos juntos. porque quando os colonialistas chegaram aqui, os povos originários chamavam aquele lugar onde eles chegaram de Pindorama, ‘terra das palmeiras’.
Cacique Babau, em participação de live do Coletivo Legítima Defesa juntamente com Nêgo Bispo:
Bispo, você falou uma coisa interessante. Pelos povos do Brasil, é usado o nome Pindorama, que significa ‘terra das palmeiras’, por quê? Olha bem, quati, buri, tucum, juçara, pindoba, assarí e muitas outras palmeiras, todas elas são comestível, alimento do homem e de todos os animais. Nós, andando na floresta, qualquer palmeira dessa nos alimenta.
Então, como não sermos ‘terra da palmeira’ com tanta palmeira abundante no território nacional, que hoje é dizimado, saqueado, destruído, sem saber o fundamento dela debaixo da floresta. Porque ela vive debaixo da mata, ela não ultrapassa a floresta, ela vive debaixo, e alimenta uma diversidade de pássaros, importante para a biodiversidade e para a alimentação dos nossos povos.
Música: “Canção do Exílio” (Reynaldo Bessa e Marcelo Alvarez), com Reynaldo Bessa
Não permita Deus que eu morra
Sem que veja isto mudar
Não permita Deus que eu cisme
Que a palmeira virou toco
E o sabiá quedou-se rouco
Por não ter pra quem cantar
Nêgo Bispo:
Contra-colonialismo é um conceito afro-pindorâmico, porque os indígenas também concordaram, boa parte deles estão usando o conceito contracolonialista.
Aqui não é Brasil, para nós. Aqui é Pindorama. E nós viemos de África. Então o encontro, a confluência entre africanos e povo pindorâmico é um encontro afro-pindorâmico. E Babau simplesmente disse ‘nós estamos é junto’, é confluência na retomada.
Então são vários conceitos que se encaixaram dentro da nossa trajetória tanto dos quilombolas quanto dos povos indígenas. Hoje, nós temos uma pessoa maravilhosa – Ailton Krenak – a prática dele, a língua super afinada e os questionamentos. Por exemplo, você diz humanidade, ele diz florestamentos, florestidades.
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
A gravação com António Bispo dos Santos, o Nêgo Bispo, aconteceu durante participação dele em evento na Universidade de São Paulo. O quilombola tem realizado palestras e cursos e tem participado como professor convidado no projeto “Encontro de Saberes”, da Universidade de Brasília, e em aulas no Programa de Formação Transversal em Saberes Tradicionais da Universidade Federal de Minas Gerais.
O áudio do Cacique Babau foi extraído de encontro com Nêgo Bispo promovido em live do Coletivo Legítima Defesa, em fevereiro de 2022.
Marcelo Abud para o podcast de educação do Instituto Claro.