Ouça também em: Ouvir no Claro Música Ouvir no Spotify Ouvir no Google Podcasts Assina RSS de Podcasts

“Morangos mofados” está na lista de leituras obrigatórias da Unicamp 2025. O livro de contos de Caio Fernando Abreu (1948-1996) foi publicado em 1982 e é marcado pelo período de início de reabertura política durante a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Os textos tratam do combate à repressão e têm como pano de fundo relações afetivas.

“Caio foi uma grande voz da literatura da homoafetividade, assim como fez o Cazuza no terreno da música, ele também assumiu o problema que ele estava enfrentando, o problema de saúde da Aids. Durante a epidemia de Aids, nós tivemos a circulação de discursos de ódio muito fortes contra os homossexuais, contra homossexualidade, e o Caio foi uma voz combativa contra o preconceito gerado por essa situação”, afirma o professor de literatura Fernando Marcílio.

Dos 18 textos de “Morangos mofados”, o vestibular da Unicamp escolheu seis: “Diálogo, “Além do Ponto”, “Terça-feira Gorda”, “Pera, uva ou maçã?”, “O dia em que Júpiter encontrou Saturno” e “Aqueles dois”. Os três primeiros fazem parte do segmento “O Mofo”. Os outros três integram a divisão chamada de “Os Morangos”.

“E eu acho muito interessante que o leitor tenha em mente essa divisão e essa estrutura para poder começar a leitura dos contos. A primeira parte, por exemplo, se chama “O mofo” e apresenta uma perspectiva um pouco mais pessimista, um pouco mais desencantada, envolvendo relações de homoafetividade. [A segunda parte] apresenta um otimismo um pouco maior, apresenta perspectivas de libertação desse clima opressivo que se vivia no Brasil por causa da ditadura e por causa do conservadorismo social”, resume Marcílio.

Contracultura

Para dar conta da dualidade entre desejos e movimentos repressivos, a linguagem de Caio Fernando Abreu remete a jovens que se identificavam com a contracultura como forma de se contrapor ao pensamento repressor.

“Eles não se adequavam, evidentemente, à sociedade militarizada da ditadura, mas também não aderiam completamente à luta política mais tradicional da linha partidária que se verificava no Brasil. O Caio é ligado ideologicamente a essa corrente da contracultura, portanto a essa visão um pouco mais cética e que via com desilusão o cenário político, no qual não encontrava perspectivas muito amplas de expressão e de manifestação de pensamento”, conclui.

Crédito da imagem: azerbaijan_stockers – Freepik

Transcrição do Áudio

Música: “Poison Apple”, de Quincas Moreira, fica de fundo

Fernando Marcílio:

O Caio Fernando Abreu, a partir de 1982, justamente com a publicação de “Morangos Mofados”, esse livro de contos que está na lista da Unicamp, que ele conseguiu o sucesso nacional. Caio foi uma grande voz da literatura da homoafetividade, assim como fez o Cazuza no terreno da música, ele também assumiu o problema que ele estava enfrentando, o problema de saúde da Aids. Durante a epidemia de Aids, nós tivemos a circulação de discursos de ódio muito forte contra os homossexuais, contra homossexualidade, e o Caio foi uma voz combativa contra o preconceito gerado por essa situação.

Meu nome é Fernando Marcílio. Trabalho no sistema Anglo de ensino.

Vinheta: Livro Aberto – Obras e autores que fazem história

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

“Morangos mofados” integra a lista de leituras obrigatórias da Unicamp a partir do vestibular para 2025. O livro de contos de Caio Fernando Abreu é lançado no período de reabertura política e traz o enfrentamento à repressão que havia se intensificado durante a ditadura civil-militar iniciada em 1964 no Brasil. Nos dezoito textos, o autor aborda relacionamentos que envolvem aspectos afetivos, sentimentais e sociais.

Fernando Marcílio:

O Caio, então, ele escreve num momento de início da abertura e esse é um dado importante, porque (é) nesse momento que começam a aparecer as alternativas políticas para as esquerdas brasileiras, geralmente esses jovens ligados à contracultura. Para esses jovens, havia um ceticismo e um desencanto muito grande. Eles não se adequavam, evidentemente, à sociedade militarizada da ditadura, mas também não aderiam completamente à luta política mais tradicional da linha partidária que se verificava no Brasil.

O Caio é ligado ideologicamente a essa corrente da contracultura, portanto a essa visão um pouco mais cética e que via com desilusão o cenário político, no qual não encontrava perspectivas muito amplas de expressão e de manifestação de pensamento.

Marcelo Abud:

Os 18 textos de “Morangos Mofados” estão divididos em três partes. O vestibular da Unicamp escolheu três contos da primeira parte e outros três da segunda.

Fernando Marcílio:

E eu acho muito interessante que o leitor tenha em mente essa divisão e essa estrutura para poder começar a sua leitura dos contos. A primeira parte, por exemplo, ela se chama “O mofo” e apresenta uma perspectiva um pouco mais pessimista, um pouco mais desencantada, envolvendo relações de homoafetividade.

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:

Então você tem o primeiro conto, por exemplo, “Diálogo”, que é um diálogo entre duas personagens, e esse diálogo gira em torno da definição da expressão “companheiro”, que é uma expressão que naquele momento, nos anos 60/70, apresentava algumas nuances.

Um primeiro sentido mais neutro é o de compartilhamento, de parceria. O segundo sentido tinha um teor mais político: companheiro era a forma de tratamento entre pessoas que assumiam a mesma postura, quase sempre de esquerda. E um terceiro sentido tinha uma dimensão moral, companheiro, companheira era como se tratavam as pessoas que constituíam casais. No caso, nós temos um casal homossexual. Pra eles, assumir a palavra “companheiro” era enfrentamento social, tanto numa dimensão moral, porque eles são homossexuais, quanto numa dimensão política, porque eles seriam então confundidos ou associados a posturas de esquerda.

Então é um diálogo truncado, não é, por causas desses temores políticos e morais. É um conto muito curto, de apenas duas páginas, mas que reproduz muito bem a atmosfera persecutória e de medo que cercava a sociedade brasileira, principalmente aqueles vistos como transgressores políticos e morais do conservadorismo.

Os outros três contos selecionados pela Unicamp pertencem à segunda parte. Essa segunda parte, que se chama “Os morangos”, apresenta um otimismo um pouco maior, apresenta perspectivas de libertação desse clima opressivo que se vivia no Brasil por causa da ditadura e por causa do conservadorismo social.

Marcelo Abud:

Dessa segunda parte, Marcílio comenta o conto “Aqueles Dois”.

Fernando Marcílio:

Aqui as personagens têm nomes: Raul e Saul. Eles se encontram num escritório, estreitam a amizade por conta de interesses semelhantes, não é, música, cinema e tal. Mas, embora os dois tenham vindo de relações heterossexuais, o desejo que um sente pelo outro permanece inconfessado. A despeito disso, os colegas do trabalho começam a desconfiar, e eles são então denunciados ao diretor do escritório, que acaba por optar por demiti-los.

Quando eles ficam sabendo os motivos, eles dizem que não havia nada entre eles, mas o fato é que no final do conto eles se sentem como se estivessem se libertando daquele ambiente opressor, que é um ambiente de trabalho, que é uma metonímia da própria sociedade. E os dois vão embora juntos e tomam o mesmo táxi pra ir embora, o que parece anunciar uma perspectiva de uma vida em comum.

Marcelo Abud:

O professor explica por que escolheu e lê um trecho do conto “Aqueles Dois”, que fecha a segunda parte do livro.

Fernando Marcílio:

A despeito da tragédia pessoal do Caio, que enfrentou o preconceito e a Aids, é muito interessante que a gente tenha esperança de que possamos vencer forças retrógradas que ainda existem no Brasil. Por isso eu escolhi esse trechinho final do conto, que se chama “Aqueles Dois”. O trecho é o seguinte:

Som de página sendo virada

Música: “Eletrosamba”, de Quincas Moreira, fica de fundo

Fernando Marcílio:

“Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos.

Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai, ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”.

Som de página de livro sendo virada

Fernando Marcílio:

Eu acho maravilhoso esse final, porque o título do conto “Aqueles Dois” já mostra a perspectiva da sociedade, aqueles dois, um certo desprezo por esse casal, né, por esse par de pessoas que está construindo uma paixão. Acho também interessante que o espaço de trabalho nesse trecho seja associado a uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária, ou seja, espaços de aprisionamento, dos quais eles se libertam quando eles saem – e o termo usado é esse –, mais altos e mais altivos, como se eles saíssem empoderados e reafirmando a sua independência de amar quem quiser. O fato de os colegas de trabalho falarem “Ai, ai”, que é uma coisa bem infantil. E o fato deles não ouvirem isso, mostra que eles deixam para trás o preconceito. Eles não dão ouvidos a esse preconceito. E a afirmação final – que é maravilhosa: “A nítida sensação de que seriam infelizes para sempre, e foram” substitui o final feliz, que é o final do casal dos dois rapazes, pelo final infeliz, para os homofóbicos, que serão infelizes para sempre.

Som de página de livro sendo virada

Marcelo Abud:

Marcílio compartilha o que acredita que pode chamar atenção do vestibular da Unicamp em relação a “Morangos mofados”.

Fernando Marcílio:

A coloquialidade, né, a linguagem mais coloquial e também a intertextualidade com obras da música, da literatura, da pintura, das artes plásticas. A Unicamp pode fazer uma solicitação nesse sentido, colocar ou explicar uma determinada referência feita num determinado conto e solicitar ao aluno que explique a relação entre essa referência e a narrativa. Então, esses recursos, essas imagens são sempre muito interessantes. Isso é muito bom porque o aluno – qualquer leitor, não é só aluno leitor –, ele tem que ser curioso. Então, se ele encontra lá uma referência a John Lennon, se ele encontra lá uma referência a Van Gogh, ele tem que ir atrás de saber o que que eles fizeram, o que que eles representam e tentar estabelecer esse diálogo porque isso é esclarecedor sobre a própria narrativa. O leitor sempre tem que ser um leitor curioso pra poder captar plenamente a atmosfera do conto que ele lê.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:

O livro de Caio Fernando Abreu é importante ao se tornar uma referência no enfrentamento à repressão que marcou o período da ditadura civil-militar no Brasil. Nos contos, o escritor oscila entre o pessimismo e a esperança diante das relações humanas.

Marcelo Abud para o Livro Aberto, do Instituto Claro.

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Receba NossasNovidades

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.