A culinária afrodiaspórica envolve pratos, técnicas e ingredientes culinários criados por africanos e seus descendentes que foram espalhados pelo mundo devido à diáspora, ou seja, a dispersão forçada motivada principalmente pelo tráfico de escravos. Assim, mistura influências africanas com tradições dos países onde essas comunidades se estabeleceram.
“Ela é a ressignificação e permanência do conhecimento cultural alimentar africano no Brasil, conhecimento que se apoia em fatores sociais e culturais provindos do continente africano”, explica o mestre em química e membro do Coletivo de Negros e Negras Ciata no Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão da Universidade Federal de Goiás (LPEQI/UFG) Vander Luiz Lopes dos Santos.
“Assinalar a presença das influências africanas no hábito alimentar do brasileiro é reconhecer que este grupo social e suas contribuições foram e são ímpares para a formação identitária do país”, enfatiza.
Santos explica que a culinária afrodiaspórica pode ser utilizada no ensino de química fazendo um contraponto à visão eurocêntrica presente nas ciências. Também ajuda a contemplar as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas. “Usar da culinária afrodiaspórica no ensino de química é utilizar-se de uma educação antirracista que busca dar visibilidade à luta dos que foram silenciados pela colonialidade”, explica.
“Além disso, valoriza povos africanos e negros brasileiros, uma vez que a ação diaspórica trouxe ao Brasil mão de obra qualificada que também trabalha com a transformação da matéria e que tem profundo conhecimento de suas propriedades”, relata. “Muitos dos processos, como a moagem da cana-de-açúcar, produção da cachaça, técnicas alimentícias, açúcar, mineração e metalurgia advêm de inúmeros povos africanos que vieram forçadamente para cá”, completa.
Conheça abaixo sete pratos e ingredientes da culinária afrodiaspórica que podem ser associados a conteúdos curriculares de química. Veja mais sobre o assunto na pesquisa dos professores do Coletivo Ciata.
1) Feijoada
O prato é fruto do cozimento de restos de porco que sobravam da alimentação dos senhores de escravos junto ao feijão-preto, que tem origem sul-americana e era consumido por indígenas. “É possível abordar os conceitos químicos envolvidos no preparo da feijoada usando a panela de pressão na passagem do grão cru para o cozido”, explica Santos.
Ele sugere apresentar aos alunos os pressupostos científicos variáveis de estado – pressão, volume e temperatura – associados no cozimento dessa leguminosa. “Podemos traçar relações com as transformações isovolumétricas, isotérmicas e isobáricas; explicar que o cozimento sofre interferência da altitude local e por que a pressão aumenta no interior da panela”, indica.
Técnico de laboratório no Instituto de Química (UFG), Juvan Silva indica trabalhar também os acompanhamentos da feijoada. “A laranja contém vitamina C, que combate os radicais livres; e potássio, que ajuda na eliminação do sódio. O professor também pode discutir conceitos de pH”, aponta.
Você confere o plano de aula completo sobre como usar o preparo da feijoada para explicar reações químicas aqui.
2) Acarajé
É um bolinho de feijão-fradinho frito em azeite de dendê. “A crocância e a cor dourada são resultados das reações de Maillard que ocorrem durante a fritura, na qual aminoácidos e açúcares reagem para formar compostos de sabor e cor”, aponta Santos.
3) Vatapá
É um prato feito com pão, leite de coco, azeite de dendê, camarão e amendoim. “A combinação de ingredientes líquidos e sólidos cria uma emulsão estável, que demonstra a química das misturas homogêneas”, ensina Santos.
4) Moqueca
Ensopado de peixe ou frutos do mar cozido em leite de coco e azeite de dendê, temperado com cebola, tomate e pimentão. “O processo de cozimento lento permite a transferência de calor e a interação dos sabores dos ingredientes, demonstrando a difusão de moléculas de sabor”, destaca Santos.
5) Quibebe
“É um purê de abóbora que pode incluir ingredientes como carne seca. Durante o cozimento, o amido da abóbora gelatiniza, espessando o purê e demonstrando a química dos polímeros e a gelatinização”, indica Santos.
6) Cocada
É um doce de coco que envolve a dissolução e recristalização do açúcar. “A formação de cristais grandes ou pequenos depende da temperatura e da quantidade de água usada, ilustrando a química da cristalização”, acrescenta Santos.
7) Azeite de dendê
O dendezeiro (Elaeis guineensis) é uma palmeira de origem africana trazida para o Brasil na época do tráfico negreiro. Estima-se que o azeite de dendê já era utilizado por egípcios há pelo menos cinco mil anos. Além disso, o dendê é amplamente utilizado na culinária brasileira de matriz africana, incluindo o acarajé, o caruru, a moqueca e o vatapá. No artigo “Tem dendê, tem axé, tem química: sobre história e cultura africana e afro-brasileira no ensino de química” (2017), Silva e Santos indicam discutir no ensino médio o conceito de ácidos graxos, suas estruturas, nomenclatura, classificação e propriedades físicas a partir do azeite de dendê.
Além disso, é possível fazer um experimento mostrando que o produto não se mistura com água. “Assim sugerimos as seguintes discussões: analisar a intensidade das interações entre as moléculas de óleo, as interações entre as moléculas de água e as interações formadas entre as moléculas de óleo e de água”, recomendam.
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