Saberes matemáticos produzidos por povos africanos, populações tradicionais e grupos marginalizados costumam sofrer apagamentos em um currículo que enfatiza que o conhecimento foi produzido essencialmente por europeus. Na contramão disso, ensinar a matemática por uma perspectiva decolonial ajuda a resgatar contribuições valiosas de outros povos na mesma medida que contribui para a desconstrução do eurocentrismo. 

“A colonialidade engendrou a hierarquização das raças. Nesse processo, povos como os indígenas foram historicamente marginalizados como produtores de saberes e fazeres. A decolonialidade, por sua vez, opera para desnaturalizar essa hierarquização de saberes e inferiorizações”, resume a professora da licenciatura intercultural indígena da Universidade Federal do Amapá (Unifap), Cristiane do Socorro dos Santos Nery. 

“Ela busca trazer conhecimentos outros, valorizar a ancestralidade preta e abrir espaços para os apagados da história. Por exemplo, o currículo tradicional fala sobre Pitágoras, mas não com quem ele estudou, dos conhecimentos matemáticos produzidos no antigo Egito assimilados pela Grécia”, acrescenta o mestrando em educação matemática e tecnológica da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), Edson Carlos Sobral de Sousa. 

Entre os benefícios para os alunos está a representatividade. “A decolonialidade lembra que a matemática não é neutra e reforça estereótipos do homem branco como produtor do conhecimento científico. Isso afasta o estudante preto que não reconhece sua ancestralidade como detentora de conhecimentos matemáticos também”, pontua Sousa. 

Outro benefício é ajudar a resgatar a conexão entre a matemática e práticas cotidianas. “A matemática nos povos indígenas, por exemplo, é revelada na solução de problemas diários. Evidencia o quanto as práticas sociais se relacionam com as matemáticas. Uma matemática que surge das necessidades inerentes a esses grupos”, compartilha o líder do Grupo de Estudos, Pesquisas e Práticas em Educação na Amazônia Amapaense (GEPEA) da Universidade Estadual do Amapá (UEAP), Vitor Sousa Cunha Nery.

Para os professores que desejam exercer um ensino decolonial, Santos Nery indica questionar o discurso de que a matemática possui um único referencial, prezando sempre por trazer a diversidade à sala de aula. “É importante priorizar o diálogo entre os saberes científicos, os saberes escolares e os saberes das tradições”, recomenda.

“Um ensino decolonial de matemática exige questionar e avaliar os referenciais que trazemos aos alunos e como o conhecimento é retratado nos livros didáticos, entre outros”, completa Sousa. 

A seguir, conheça sete propostas para um ensino de matemática em uma perspectiva decolonial. 

1) Explore a geometria presente nos grafismos de diferentes povos indígenas

“No artesanato e na arte gráfica dos povos indígenas é possível fazer associações a conceitos matemáticos e às noções de ângulos, simetria, proporcionalidade, figuras geométricas, paralelismo, dentre outras matemáticas”, lista Santos Nery.

No artigo “Educação Intercultural e Etnomatemática: estudo sobre grafismo indígena” (2023), a docente traz exemplos de artesanatos, cestarias, pinturas e ornamentos que trazem elementos geométricos produzidos na cultura de povos originários do Amapá e Norte de Pará. 

“Os Palikur, por exemplo, utilizam carimbos (kowangbet) esculpidos na madeira com diferentes padrões gráficos, como escama de peixe pirarucu, marcas da serpente cascavel, de borboleta (kuyuw), pontinhos representando a marca da onça (kawo kwire), entre outros”, descreve Santos Nery. 

Segundo a autora, dependendo dos padrões usados nas peças, pode-se associá-los à ideia de fração e proporcionalidade. Já a partir de cestos indígenas, é possível pensar no cálculo mental, uso de algoritmos e no raciocínio lógico presente no processo de confecção.

2) Apresente sistemas de contagem e medidas usados por povos tradicionais

Diversos povos indígenas elaboraram sistemas de contagem e de medidas para as suas práticas cotidianas que se diferem do sistema decimal. 

“Nas práticas cotidianas dos povos do baixo Oiapoque, por exemplo, o corpo é utilizado como unidade de medida. O comprimento do pé, a palma da mão e a braça são utilizados para medir o terreno, a matéria-prima para produção da canoa entre outras atividades que envolvem distâncias e escalas”, completa Cunha Nery.

3) Use a sombrinha do frevo para exemplificar um octógono regular

 O pesquisador do Grupo Aya-Sankofa de Estudos Afrocentrados e Decoloniais em Educação Matemática (UFPE), Alexander Cavalcanti Valença, desenvolveu uma oficina chamada A Geometria da Sombrinha de Frevo”.

A peça, usada para marcar os passos dos dançarinos nessa manifestação cultural de matriz afro-brasileira, se torna um octógono regular – polígono formado por oito segmentos de reta de mesmo comprimento – quando planificada em uma folha de papel.

A sequência didática de Valença foi dividida em três etapas: a exibição de vídeo e texto sobre a história do frevo seguidas pela planificação e coloração da sombrinha de frevo pelos estudantes. Eles desenharam dois octógonos a partir de duas circunferências, sendo cada um formado por oito triângulos. 

“O segundo octógono foi recortado, de forma a separar os oito triângulos para dar a ideia de composição de partes de áreas da figura plana”, explica Valença em artigo. Por fim, a terceira etapa contou com a apresentação das produções dos estudantes e as observações geométricas deles em relação aos desenhos. 

4) Jogo mancala para trabalhar progressão aritmética e raciocínio lógico

O jogo mancala tem origem africana e possui como objetivo a captura de sementes por cada participantes. Para isso, ele é composto por 12 buracos que, no início da partida, contam com quatro sementes em cada um deles. 

Na dissertação “O jogo africano Mancala e o ensino de Matemática em face da Lei 10.639/03” (2011), o professor Rinaldo Pevidor Pereira trabalhou com alunos da educação básica conceitos de multiplicação, raciocínio lógico, razão e progressão aritmética (P.A.) por meio do jogo. 

Além desses, outro conteúdo que pode ser explorado é a probabilidade: à medida que o jogo avança, os jogadores podem calcular as possibilidades de certos eventos ocorrerem ou não. 

Na sequência didática desenvolvida por Pereira, o mancala foi produzido com caixas de ovos e sementes. O professor ainda estudou com os alunos aspectos biológicos e culturais da árvore baobá, que originalmente fornece as sementes utilizadas no jogo. 

5) Cultura de trançar cabelos pode ensinar sobre formas

Na pesquisa “Para além da estética: uma abordagem etnomatemática para a cultura de trançar cabelos nos grupos afro-brasileiros” (2013), a professora de sociologia Luane Bento Dos Santos  destaca alguns conhecimentos matemáticos que aparecem na confecção dos penteados trançados, uma manifestação cultural de diferentes populações negras ao redor do mundo. Essas podem incluir: frações;  formas circulares e triangulares; paralelas e diagonais e P.A. 

6) Jogo de búzios e análise combinatória

Manifestação importante da religião de matriz africana candomblé, os búzios são conchas marinhas que, no culto, atuam como portal de comunicação entre o mundo material (terra, aiye) e espiritual (céu, orun). O professor de matemática Fabrício de Souza de Oliveira usa o jogo para explicar probabilidade e análise combinatória para o alunos do ensino fundamental.

As conchas usadas no jogo de búzios recebem um corte longitudinal na parte convexa. O ritual consiste em fazer uma pergunta e jogar 16 delas sobre uma mesa. A quantidade de conchas que caírem abertas (parte côncava quebrada) ou fechadas (parte côncava inteira) é analisada para compor uma resposta.

Assim, o jogo ajuda a diferenciar os conceitos de combinação (quando a ordem não importa) e arranjo (quando cada ordem é usada para gerar uma interpretação diferente).

7) Pesquisar a matemática no antigo Egito

Os alunos podem ser estimulados a pesquisar o papel da matemática no antigo Egito.  

Os egípcios antigos aplicavam seus conhecimentos matemáticos em áreas como construção, astronomia e medição de terras. Usavam um sistema de numeração decimal, mas com símbolos que representavam cada potência de dez (1, 10, 100, etc.) separadamente e símbolo para representar o zero. Além disso, dominavam a adição, subtração, multiplicação e divisão, assim como a geometria.

O Papiro Rhind, por exemplo, contém 85 problemas envolvendo aritmética e geometria, incluindo temas como frações, repartições proporcionais, regra de três simples, equações lineares, trigonometria básica, medir áreas de triângulos, trapézios e retângulos, calcular volumes de cilindros e prismas. Já o Papiro Cairo, datado de 300 a.C., contém 40 problemas matemáticos, sendo nove deles abordando o que seria conhecido posteriormente como o Teorema de Pitágoras.

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Esse conteúdo faz parte do especial “Educação decolonial”. Para acessar os outros materiais com abordagem decolonial, clique aqui.

Atualizado em 12/09/2023, às 12h35.

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