Muitos são os benefícios de ensinar a física por uma perspectiva decolonial, isto é, desconstruindo o eurocentrismo. O primeiro é retirar a visão estereotipada de que o conhecimento foi desenvolvido pelos povos europeus, quando houve intercâmbio com diversas nações africanas, como o Egito. Além disso, apresentar conhecimentos de física desenvolvidos por povos africanos e indígenas desmistifica uma visão colonizadora de que tais populações são selvagens, inferiores e incapazes de produzir saberes científicos.

“Desconstrói-se a visão de uma evolução científica de conhecimento único e faz com que o indivíduo que é visto socialmente como ‘menor’ se identifique com a grandeza da sua ancestralidade”, resume o doutor em física pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Jorge Dantas Junior.

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“A física tem papel fundamental de explicar a origem do Universo e como este evolui, o que não é pouca coisa”, opina o docente e membro do Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Alan Alves-Brito. “Sem a revisão das bases colonizadoras da física, não poderemos barrar os processos que excluíram determinados grupos de espaços de poder e do pensamento científico, como pessoas negras, indígenas, mulheres, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, entre outros”, completa.

A seguir, professores apontam 8 formas de promover um ensino de física decolonial na educação básica.

1) Revise conhecimentos atribuídos aos gregos antigos

Muitos saberes atribuídos aos gregos antigos foram adquiridos por eles em estudos nos grandes centros de conhecimento da antiguidade, como Egito Antigo e Babilônia.“Temas como o plano inclinado, alavanca, parafuso, sifões, transferência de líquidos, flutuação de corpos submersos e conhecimento de pressão do ar já eram estudados e utilizados pelos egípcios. Grandes filósofos como Aristóteles, Tales e Pitágoras estudaram extensivamente no Egito”, lembra Júnior, que é autor do artigo “Para um ensino de Física afrocentrado no currículo do ensino médio integrado de um Instituto Federal” (2022).

2) Aborde a engenharia do antigo Egito

O conhecimento apurado de metalurgia e engenharia era uma realidade dos povos egípcios mais de 2 mil anos antes de Cristo. “Imhotep foi o primeiro engenheiro a construir o maior edifício do seu tempo, por volta de 2.600 a.C: uma pirâmide com aproximadamente 62 metros de altura”, lembra Júnior.

“Este povo já possuía conhecimento dos volumes de pirâmides e de um cilindros, além de como calcular a área de uma superfície de um hemisfério utilizando o valor de 3,16 para o Pi (hoje de 3,14) 1.700 anos antes de Arquimedes”, pontua.

Com essas informações, Júnior recomenda utilizar, ainda, o conceito de equilíbrio estático e questionar os alunos: o que pirâmides, obeliscos e outras grandes estruturas necessitam para ficarem estáveis? “Questione resistência dos materiais utilizados nas construções das edificações para que eles não sofram deformações indesejadas pela dilatação e contração provocadas por oscilações de temperatura”, acrescenta.

3) Apresente os estudos astronômicos indígenas

Aborde os estudos astronômicos do céu noturno e diurno dos povos indígenas. “Povos originários brasileiros utilizavam o conceito de relógio solar e observações de estrelas e fenômenos atmosféricos para prever o melhor momento de pesca, caça e plantio. Eles também se orientavam pelas figuras no céu noturno e constelações, mas os desenhos eram outros. As figuras mais famosas são as constelações da Ema e do Homem Velho, que lhes permitiam acompanhar as estações do ano”, informa Júnior.

Em sequência didática disponibilizada online, Alves-Brito recomenda apresentar o Planisfério Afro-Indígena, assim como o nome dado aos astros por diferentes povos. Já Junior indica, ainda, passar à turma o vídeo “Constelações indígenas brasileiras”, da TV Unesp.

4) Apresente os estudos astronômicos de povos africanos e asiáticos

“Em astronomia, faço uma abordagem cosmológica de outros povos como os africanos, babilônicos e chineses. Muitos dos dados utilizados pelo astrônomo europeu Copérnico para formular a sua hipótese de que o Sol estava no centro do universo foram adquiridos em estudos feitos por antigos estudiosos árabes”, lembra

Júnior explica que em uma região próxima ao antigo Mali, havia uma nação do Dogon que já tinha conhecimento da existência do satélite da estrela Sirius, hoje chamada de Sirius B, que é invisível a olho nu. “Eles celebravam com o festival bado a suposta volta completa de Sirius B entorno do próprio eixo (rotação ainda desconhecida)”, aponta.

Ainda sobre astronomia, os egípcios já constataram que a estrela Sirius se encontrava na mesma posição do Sol nascente a cada 1461 anos. “Para os egípcios era de extrema relevância saber a posição dessa estrela, pois quando ela nascia ao Leste, anunciava a enchente do Rio Nilo e, com isso, sabiam que teriam uma colheita farta”, explica Júnior.

5) Destaque a cosmologia de povos diversos

A cosmologia é o estudo da origem e da composição do Universo. “Cada povo buscou observar e interpretar os fenômenos celestes e apresentou sua própria narrativa do céu”, explica a professora formada em física com ênfase em astrofísica pela Ufrgs Daniela Hiromi Okido.“Estudar não apenas o céu da ciência astronômica, mas os das culturas indígenas e afro-brasileiras, mostrará ao estudante que não existe uma perspectiva melhor do que a outra, apenas distintas”, justifica

Na dissertação “Etnofísica Paiter Suruí: dialogando sobre cosmologia” (2019), a pesquisadora Kassia Priscilla Gonçalves de Almeida criou uma história em quadrinhos para apresentar a origem do universo pelo povo Paiter Suruí – material que pode ser explorado por outros professores. Já Alves-Brito relata as perspectivas cosmológicas dos povos africanos Bantu, Iorubanos e Fon em artigo  (capítulo 4).

6) Apresente o calendário egípcio

O calendário que previa as estações do ano surgiu no Egito em torno de 1100 a.C. para prever as enchentes do Rio Nilo. “Inicialmente era um calendário lunar, mas não muito eficiente. Ao observar o nascer do Sol, percebeu-se uma maior previsão das enchentes, tornando o calendário solar, com 365 dias anuais”, explica Júnior.

7) Discuta questões sociocientíficas

Okido recomenda discutir com os alunos como a tecnologia vinculada a astrofísica pode desrespeitar povos tradicionais e originários. Na monografia “Exercitando o pensamento decolonial na astronomia: um convite para sulear nossas perspectivas do céu (2021)” , ela recomenda abordar dois casos.

O primeiro é a construção do telescópio de trinta metros TMT (Thirty Meter Telescope) na montanha Mauna Kea, situada no Havaí e tida como um lugar sagrado para os nativos.
“A forte relação com a natureza dos nativos havaianos foi desrespeitada pelas instituições governamentais norte-americanas. Uma questão em andamento, mas precisamos nos questionar: povos indígenas têm o poder de decidir o que acontece em suas próprias terras?”.

O segundo foi a construção do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão, planejada durante o regime militar e que retirou comunidades quilombolas de suas terras.“Priorizou-se o desenvolvimento científico e tecnológico de uma região sem dialogar ou compreender a comunidade que ocupava aquele espaço, suas relações sociais, saberes e cultura”, diz Okido.

8) Cite físicos, engenheiros e cientistas de populações marginalizadas

Alves-Brito explica que há uma sub-representação de pessoas negras, mulheres, LGBTQIA+, indígenas e PcDs na Física. “Esse dado é uma construção histórica, social e política, parcialmente explicada nas lógicas da colonização”, esclarece.

Assim, a alternativa é sempre incorporar esses pesquisadores nas aulas. “Além de citar grandes construtores de edificações no antigo Egito, como Imhotep, fale sobre outros cientistas negros e negras contemporâneos, pois a representatividade também é importante ao se pensar em um currículo afrocentrado”, complementa Júnior.

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Esse conteúdo faz parte do especial “Educação decolonial”. Para acessar os outros materiais com abordagem decolonial, clique aqui.

Atualizado em 12/09/2023, às 12h48.

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