A colonialidade afeta os conteúdos de biologia ao impor uma visão eurocêntrica e ocidentalizada do conhecimento científico, ignorando saberes indígenas, africanos e de outras culturas não-europeias.
“Isso resulta em uma perspectiva limitada e distorcida sobre a diversidade da vida e dos sistemas biológicos, além de perpetuar estereótipos e hierarquias baseados em raça, gênero e classe”, alerta a bióloga e docente da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Suzani Cassiani.
“Povos tradicionais enfrentam problemas para manter suas tradições vivas e a escola contribui para essa desvalorização quando educandos escutam dos professores que as vivências nas suas comunidades são mitos, erradas e inferiores aos saber científico”, destaca mestra e professora de biologia do Centro Educa Mais Professor Ribamar Torres, de Pastos Bons (MA), Rosa Maria Duarte Veloso
“Podemos desenvolver um trabalho para valorizar saberes locais e potências da comunidade. Assim, busco trabalhar a diversidade cultural dos alunos engajando-os no ensino de biologia relacionando ao meio ambiente e saúde”, explica Veloso.
Como apoio ao ensino de uma biologia decolonial, Cassiani indica a Rede Internacional de Estudos Decoloniais na Educação Científica e Tecnológica e o Repositório de Práticas Interculturais: Proposições de Pedagogias Decoloniais (REPI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ele disponibiliza banco de dissertações e de lives.
Ela ainda recomenda os livros “Decolonialidades na educação em ciências”, de Bruno Monteiro e outros; e “Ecologia Decolonial”, de Malcon Ferdinand.
A seguir, conheça 10 temas do campo da biologia para trabalhar por meio de uma perspectiva decolonial.
1) Sistemas de classificação e taxonomia de outras culturas
A ciência ocidental frequentemente categoriza e classifica os organismos usando padrões eurocêntricos. Porém, culturas indígenas e africanas possuem sistemas próprios de classificação de plantas, animais e outros seres vivos.
“Eles diferem da taxonomia ocidental convencional, mas são ricos de conhecimento sobre a diversidade biológica e interrelações entre os seres vivos”, afirma Cassiani.
“O povo guarani possuía nomenclatura para plantas que são anteriores a Carlos Lineu, considerado o pai da taxonomia”, indica a bióloga e professora da Universidade Federal de Alagoas, Raiza Padilha. Ela é autora da dissertação “Caminhos para guaranizar a educação em ciências: envolvimento e luta na terra indígena do morro dos cavalos”.
2) Estudo de genética associado a questões sociais
Por meio do ensino sobre darwinismo e genética, é possível desmistificar a eugenia e racismo.
“O darwinismo deu origem a um discurso científico como se somente os europeus tivessem ‘bons genes’, provocando o início do conceito de eugenia, cujo precursor era primo de Darwin (Francis Galton)”, explica Cassiani. Racismo científico e o nazismo, ainda presente nos dias de hoje, foram outras consequências.
Já o biólogo e professor da Universidade Federal do Norte de Tocantins (UFNT), Yonier Alexander Orozco Marin, indica estudar a estrutura genética da população latino-americana.
“Na nossa ancestralidade genética via DNA nuclear, encontramos uma predominância caucásica europeia. Mas ao observar o DNA mitocondrial, que é herdado pela via materna, encontramos uma predominância africana, no caso do Brasil, e indígena, no caso da Colômbia”, explica.
“Isso está relacionado ao período colonial que ocasionou a chegada massiva de homens brancos da Europa que, entre outros crimes, teve o estupro massivo nestes territórios”, completa Marin.
3) Conhecimentos ecológicos de populações tradicionais
“Os saberes tradicionais africanos e quilombolas frequentemente incorporam uma visão da natureza e das interconexões entre os seres vivos. Ela pode ser explorada ao discutir conceitos ecológicos como cadeias alimentares, ciclos de nutrientes e conservação de ecossistemas”, aponta Cassiani.
Além disso, tais saberes incorporam a ideia de que o ser humano é parte da natureza. “A partir disso, é possível problematizar o papel do poder econômico no planeta Terra e inspirar uma visão crítica dos estudantes que valorize a coletividade”, acrescenta.
No campo da agricultura, sistemas agrícolas africanos e quilombolas são conhecidos por sua abordagem sustentável, que inclui rotação de culturas e conservação do solo.
“Essas técnicas podem ser discutidas em relação à agricultura moderna, explorando as vantagens delas para a preservação do meio ambiente e a segurança alimentar”, pontua Marin.
4) Alimentação relacionada à biodiversidade
Veloso convida raizeiros, benzedores, doceiros, artesãos e outras pessoas da comunidade para ministrar aulas de artesanato com fibras e sementes nativas, de comida afetiva e frutos da região.
“O objetivo é resgatar o olhar ancestral para a alimentação tentando reconectar esses elos perdidos pelo consumismo”, justifica.
“Eu vejo muitos pais que tiveram uma infância com restrição a alimentos ultraprocessados comprando estes para os filhos. Já os educandos costumam dizer que comer frutos nativos, produzidos na roça ou no quintal de casa, os remetem à ideia de pobreza. Como se fosse um status levar para a escola um alimento industrializado”, compartilha.
Ainda sobre alimentação, Marin indica abordar a racialização da fome na América Latina e trabalhar com os alunos receitas de pratos tradicionais, analisando a história biocultural dos ingredientes e seu valor nutricional.
5) Nascentes locais e suas histórias
Veloso fez um trabalho de mapeamos das nascentes da zona urbana da cidade com os alunos. “Conversamos com os moradores próximos a essas nascentes sobre a história local, identificando o seu uso e a importância delas para a comunidade”, relata.
“Depois, abordamos a preservação das nascentes, doenças de veiculação hídrica e racismo ambiental”.
6) Respiração anaeróbica e as bebidas de povos tradicionais
É possível falar das bebidas de povos tradicionais ao abordar respiração anaeróbia e processos de fermentação em ausência de oxigênio. Marin sugere trabalhar com os alunos o estudo da história da chicha, bebida fermentada à base de milho produzida por povos da cordilheira dos Andes.
7) Racismo e célula eucariota
Marin sugere apresentar à classe o legado do cientista senegalês Cheikh Anta Diop (1923 – 1986), que estudou os resíduos de melanócitos nas múmias do antigo Egito. Essas células da pele onde se produz melanina para proteção contra a radiação UV é que proporciona coloração à mesma.
“Ele formulou que os habitantes do antigo Egito foram pessoas negras”, conta o professor.
Em sua tese de doutorado, Marin associou com os alunos do ensino fundamental os estudos de Diop com células eucariontes e o racismo em filmes. Recentemente, um documentário que trazia uma Cleópatra negra levou a reações racistas do governo egípcio.
“A proposta visava refletir sobre racismo e a noção de branquitude. Ao final, os estudantes foram desafiados a escreverem a Diop”.
8) Sistema endócrino e atletas transgêneros
“A perspectiva decolonial também destaca a importância de compreender a colonialidade de gênero, ou seja, como a imposição eurocêntrica de gênero durante o colonialismo europeu afetou profundamente as sociedades pré-colombianas nas Américas e na África. Esse sistema de gênero cis heterossexualista, branco, burguês e binário inferiorizou as mulheres, tanto em termos cognitivos, políticos quanto econômicos”, explica Marin.
Ao abordar a história do conhecimento biológico em relação aos debates sociais e científicos sobre sexo biológico, Cassiani indica discutir com estudantes os debates na mídia sobre a participação de atletas transgêneros em esportes de alto rendimento, dialogando também com cientistas transgênero conhecedoras da temática.
9) As cobras nas diferentes matrizes religiosas
O biólogo Antônio Mauricio Fontinele de Freitas produz conteúdos de herpetologia, que compreende o estudo de cobras. “Ele traz a perspectiva das religiões de matriz africana, que contrariamente às de matriz cristã, não difundem o medo e perseguição a estes animais, mas destacam valores espirituais e ecológicos destes seres”, aponta Cassiani.
Nas religiões de matrizes africanas, a cobra aparece na lenda do orixá Oxumaré. Já na Cultura Inca, o condor, o puma e a serpente representavam respectivamente o mundo dos deuses, dos vivos e dos mortos.
10) Etnobotânica
No ensino plantas, é possível ir além da morfologia e fisiologia das angiospermas e gimnospermas, trabalhando o uso das plantas pelos povos (etnobotânica), plantas alimentícias não-convencionais (PANC’s), usos tradicionais da flora local nos processos de cura, agronegócio e respeito aos territórios e aos detentores de saberes ancestrais.
“Os saberes dos povos africanos e quilombolas incluem um rico repertório de conhecimentos sobre plantas medicinais e práticas terapêuticas”, lembra Cassiani.
Em um projeto em sua escola, Veloso solicitou a ajuda de moradores conhecedores das plantas da região e de botânicos especialistas em cerrado para discutir nomes populares, usos, costumes e curiosidades.
A professora também associou referências de plantas da região presentes na literatura: em ‘Torto Arado’, de Itamar Vieira, havia passagens sobre a importância do jatobá.
“Ao trazer a proposta de leitura, convido familiares de alunos quilombolas ou de outras localidades para entender o contexto ecológico e sociocultural no qual essas plantas são utilizadas e pensar seu uso sustentável”, conta.
No projeto, a professora descobriu que os alunos desconheciam as plantas do bioma que estamos inseridos.
“Fomos à procura de plantas em floração ou frutificação para coleta e identificação”. Ao final, o grupo produziu vídeos para o TikTok (Cienvivência (@cienvivencia) | TikTok).
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Atualizado em 12/09/2023, às 12h53.