As comissões ou bancas de heteroidentificação são grupos formados dentro de instituições para analisar a autodeclaração racial de candidatos em processos seletivos, como concursos públicos e universidades, nos quais há reserva de vagas para pessoas pretas e pardas. O objetivo é prevenir fraudes no sistema de cotas.

“Elas visam impedir que pessoas não negras adentrem em vagas destinadas às pessoas negras. Isto feriria a função da política de cotas, que visa reparação pelos mais de 350 anos de escravização e a democratização racial nos espaços de poder e prestígio”, explica o doutorando em direito e ouvidor-geral da Defensoria Pública da União Gleidson Renato Dias.

“No início, bastava apenas uma autodeclaração, e pessoas brancas e amarelas se autodeclaravam pardas, usufruindo indevidamente dessa política de ingresso”, contextualiza o advogado e doutorando em Direito Lucas Módolo.

As comissões foram elaboradas como um procedimento complementar à autodeclaração. Receberam esse nome porque, em latim, o prefixo ‘hetero’ significa outro ou diferente.

“Ou seja, após candidato identificar por si próprio, será identificado por terceiros para comprovar, ou não, se sua percepção de si mesmo encontra amparo na sociedade. A autodeclaração sozinha é porta para as fraudes”, destaca Dias.

Ele conta que uma investigação da qual participou encontrou, em 2018, 440 alunos brancos que entraram via cotas raciais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não havia comissões de heteroidentificação”, lembra.

Já Módolo foi um dos fundadores do coletivo Antifraudes da Universidade de São Paulo (USP), fundando em 2018 e desativado com a instauração de comissões de heteroidentificação.

O que é analisado pela banca?

As bancas de heteroidentificação são geralmente compostas por servidores da instituição, mas isso pode variar de acordo com o órgão. “O ideal é buscar uma diversidade de pessoas em termos de raça e etnia, gênero e atuação. No caso da universidade, que as vagas sejam distribuídas entre professores, funcionários e alunos”, recomenda Módolo.

“Solicita-se que sejam convidados a compor a banca integrantes do movimento negro e pessoas que estudem o tema na região”, recomenda Dias.

A comissão avalia o fenótipo, ou seja, as características físicas visíveis da pessoa. “Além da cor da pele, há traços comuns à população negra, como lábios mais carnudos, nariz maior e mais achatado, cabelos crespos e ondulados. Isso não significa que negros de pele clara, lábios finos, nariz fino ou cabelo liso não existam”, explica Módolo.

“O motivo é que no Brasil o racismo é antinegro ou ‘de marca’. Quem sofre discriminação e violências, como ser parado pela polícia e preterido em processos seletivos de emprego, são as pessoas que aparentam ser negras”, descreve,

Dias explica que não é julgado, pela comissão, o ‘sentir-se negro’.

“Este sentir tem proteção constitucional e relação direta de como a pessoa se vê e constrói sua identidade. Analisamos se este sentimento encontra abrigo no que denomino de realidade fenotípica. Isto é: o parecer fisicamente negro, não psicologicamente, biologicamente, ancestralmente negro, entre outros,” diz.

Já a população indígena, que também é beneficiada pelo sistema de cotas, não deve passar pelas comissões de heteroidentificação, como explica Módolo.

“Nesse grupo, não falamos em fenótipo, mas pertencimento étnico. Eles pertencem a uma comunidade que possui um órgão protetor, a Fundação Nacional do Índio (Funai), e documentos como o Registro Administrativo de Nascimento de Indígena (RANI). A comprovação é mais documental, ainda que esse processo seja criticado”, explica.

Como funciona o procedimento?

Apesar de a imprensa noticiar fraudes no sistema de cotas após as pessoas já estarem admitidas em cargos ou cursando a universidade, Módolo explica que o método mais adequado é a heteroidentificação preliminar, com foco preventivo e não repressivo.

“Essa etapa é incluída no edital dos concursos e vestibulares com cotas, permitindo que os candidatos saibam previamente que sua autodeclaração será verificada antes da posse”, explica Módolo.

No dia marcado, o candidato chega ao local indicado, no qual uma câmera e uma banca de avaliadores estão posicionados. “Em frente à câmera, ele autoriza a gravação e faz sua autodeclaração. Em seguida, a gravação é encerrada, e o candidato deixa a sala”, narra Módolo.

A deliberação ocorre sem a presença do candidato. Se a autodeclaração for negada, ele pode apresentar recurso, que será analisado por outra banca, sem membros da comissão inicial. Em caso de dúvida, os membros da banca podem rever a gravação.

“Não é uma entrevista, palavra que induz existir perguntas que necessitam de respostas corretas. O único critério utilizado são os traços visíveis”, explica Dias.

Por conta disso, as comissões podem solicitar a padronização das vestimentas e proibir o uso de adereços que cubram o cabelo.

“No caso de blusas de frio, pode-se pedir para que sejam retiradas, pois já houve situações em que pessoas se bronzearam artificialmente ou pintaram o rosto para parecerem negras, mas esqueceram de pintar os braços”, relata Módolo.

Desafios atuais

Para Módolo, um desafio é capacitar os membros da banca para que o processo respeite a dignidade dos candidatos.

“Seja alguém com um fenótipo similar ao da Xuxa ou ao do Pelé se declarando negro, ambos devem ser tratados com respeito, sem ridicularização”, enfatiza.

Outra dificuldade são as bancas online, que se popularizaram após a pandemia de Covid-19.

“Podem ocorrer problemas de acesso à internet e interferências de luz ou filtros nos vídeos. Muitas fraudes identificadas posteriormente envolveram bancas online, sinalizando que o procedimento realizado presencialmente facilita a verificação”, opina Módolo.

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