O doutor em letras e pesquisador Gabriel Nascimento, no livro “Racismo Linguístico”, parte da hipótese de que se o racismo está em todas as estruturas da nossa sociedade, a língua também é atingida.
“O racismo linguístico se manifesta de muitas formas: como na escolha das figuras de autoridade que ‘podem’ falar, como apresentadores de televisão, e também no padrão da fala, ao dizer que a norma culta é aquela falada por um determinado grupo, que passa ser premiado em detrimento de outras formas de falar”, explica.
“Uma forma mais pulverizada do racismo linguístico é o imaginário que se construiu historicamente sobre o ‘erro de português’. Este é uma forma de reforçar na língua apenas o que espelha a branquitude”, acrescenta a doutora em linguística e coordenadora da comissão de diversidade, inclusão e igualdade da Associação Brasileira de Linguística (CDII-Abralin), Jorcemara Cardoso.
Para completar, segundo especialistas, o racismo também pode se manifestar em palavras e expressões cotidianas, muitas delas que usam o negro como um adjetivo pejorativo.
“Mas aqui há uma questão: não é a palavra que é racista, eu preciso pensar o contexto em que ela é colocada e, historicamente, como ela foi construída”, alerta Nascimento.
“Por exemplo, certas palavras e expressões que em outros países não são racistas, no Brasil podem ser. Pode haver palavras que são racistas em um determinado contexto, mas podem ser usadas de forma afirmativa por pessoas negras em outro”, lembra.
Língua pode ser usada como instrumento de dominação
Cardoso explica que o racismo linguístico não deve também ser visto como atividade individual ou isolada.
“É uma prática histórica que busca hierarquizar, deslegitimar, silenciar, subjugar, por meio da linguagem, pessoas, línguas, culturas, saberes que não espelham a branquitude. Vemos essa prática se materializar em ditos populares, piadas, músicas e também [em] expressões usadas no dia a dia”, completa.
“Porém, não basta apenas deixar de falar certas palavras ou substitui-las por outras, é preciso compreender porque devemos parar de utilizar a língua como instrumento de dominação”, lembra a doutora em linguística.
Para ajudar nessa tarefa de rever palavras e expressões que podem ser racistas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou a cartilha “Expressões racistas: por que evitá-las”, que lista palavras e termos preconceituosos e fornece sugestões de substituições.
Veja abaixo 30 exemplos que podem ser substituídos ou eliminados das conversas diárias.
1) A coisa tá preta
Associa a cor preta a algo ruim, perigoso ou desfavorável.
Substitua por: “a situação é difícil”; “o caso é complexo” ou “a coisa está complicada”.
2) Cabelo ruim / cabelo bombril / cabelo duro
Menospreza as características físicas das pessoas negras, associando-as a coisas ruins ou de qualidade inferior. Os tipos de cabelos existentes em sociedade são diversos e não existem melhores ou piores.
Substitua por: “cabelos crespos” ou “cabelos cacheados”, conforme suas características.
3) Cor de pele
Expressão usada para especificar tons de bege e que faz alusão à pele branca. “A ideia de que as cores claras devem ser consideradas como padrão ideal para representar a pele humana é racista”, explica a cartilha do TSE. Não existe uma cor capaz de representar a pele humana, que é diversa.
Substitua por: “tom de bege”.
4) Crioulo ou crioula
De origem colonial, refere-se pejorativamente à pessoa negra que era escravizada.
Deve ser excluída do vocabulário.
5) Da cor do pecado
Apesar de parecer um elogio, carrega preconceitos. A ideia de pecado é associada a coisas negativas, a serem evitadas e afastadas. Além disso, o pecado referido é o da luxúria, o que sexualiza pessoas negras.
Deve ser excluída do vocabulário.
6) Denegrir
Seu uso está associado à ideia de macular, manchar ou sujar, remetendo à ideia de que tornar algo negro é negativo. Assim, reforça a ligação da pessoa negra a coisas ruins.
Substitua por: “difamar” ou “caluniar”.
7) Dia de branco
De origem escravocrata, esta expressão tem dois usos: “hoje é dia de trabalho” ou “hoje é dia de descanso”. No primeiro caso, associa a pessoa escravizada à preguiça e o branco ao trabalho – o que é uma incongruência, uma vez que a escravidão era o pilar econômico do país. No segundo, faz alusão ao descanso porque o branco, por não trabalhar, poderia ter um dia de luxos enquanto seus escravos sofriam.
Substitua por: “dia de trabalho” ou “dia de descanso”, conforme o contexto.
8) Disputar a negra
Refere-se a um jogo de desempate para determinar quem ganhará. Possui caráter racista e misógino e remete ao período da escravidão, quando homens brancos que possuíam mulheres escravizadas as apostavam como prêmio.
Substitua por: “partida de desempate”.
9) Esclarecer
Significa tornar algo claro, trazer luz sobre determinado assunto. “Transmite a ideia de que a compreensão de algo só pode ocorrer sob as bênçãos da claridade, da branquitude, mantendo no campo da dúvida e do desconhecimento as coisas negras”, explica a cartilha.
Substitua por: “elucidar” ou “explicar”.
10) Escravo e escrava
Transmitem a ideia de que a pessoa já nasceu sem liberdade, como algo inato à sua condição, ignorando que os africanos foram trazidos ao Brasil e forçados a trabalhar nessa condição.
Substitua por: “escravizado”, “escravizada” ou “pessoa escravizada”.
11) Estampa étnica
Refere-se a padronagens de tecidos que fogem de modelos europeus, sendo de países africanos ou de populações indígenas. O termo eleva o europeu e o branco como padrão e classifica manifestações de outras culturas como exóticas e não-civilizadas.
Substitua por: “estampa africana” ou “estampa indígena”.
12) Humor negro
Refere-se à comédia baseada em coisas mórbidas, macabras ou ilícitas. Associa algo fora do padrão de normalidade à pessoa negra.
Substitua por: “humor ácido”.
13) Inhaca
Inhaca é uma ilha localizada na baía de Maputo, em Moçambique. Também pode designar um monarca ou líder moçambicano. No Brasil, desde o período colonial, a palavra foi associada a odores corporais ruins. Assim, liga referências negras e africanas a algo ruim.
Substitua por: “mau cheiro” ou “odor ruim”.
14) Inveja branca
A inveja, no imaginário cristão, é uma conduta reprovável. Assim, o termo estimula a classificação de que tudo de ruim deve ser associado à pessoa negra, e tudo de bom, à branca.
Substitua por: “inveja boa”.
15) Lista negra
Lista de coisas ruins, proibidas, ilícitas ou que devam ser evitadas ou perseguidas. Assim, usa-se o adjetivo negro de forma pejorativa, associando a pessoa negra a coisas que não são socialmente aceitas e devem ser evitadas.
Substitua por: “lista maldita”, “lista suja” ou “lista proibida”.
16) Magia negra
A expressão é associada a rituais ou práticas religiosas socialmente rejeitados, tanto pelo seu conteúdo quanto modo de ação. Concentra dupla discriminação: associa a palavra “negra” a coisas malvistas e induz que manifestações religiosas negras são ruins.
Substitua por: “rituais proibidos”, “rituais inadequados” ou “práticas religiosas proibidas”.
17) Mercado negro
Refere-se a um conjunto de ações comerciais ilícitas, que desrespeitam regras jurídicas e morais. O emprego do adjetivo “negro” sublinha o caráter ilícito da ação. Assim, também associa a pessoa negra ao tráfico, ao contrabando, entre outras atividades criminosas.
Substitua por: “mercado ilegal”.
18) Mulata ou mulato
Usado para se referir às mulheres negras que possuem o tom de pele claro, o termo traz problemáticas. É possível que sua origem seja a palavra mula, um animal híbrido de cavalo e jumento. Além disso, afastava a negritude do conceito de beleza (quanto mais clara, mais bonita e aceita a pessoa seria). Foi usado para hipersexualizar a mulher negra.
Substitua por: “negra” ou “negro”.
19) Mulata tipo exportação
Estimula a excessiva sexualização da mulher negra, tratando-a como um produto a ser consumido.
Deve ser excluída do vocabulário.
20) Não sou tuas negas!
É utilizada para designar revolta e incômodo com situação ou comentário. Remete ao contexto colonial, quando mulheres escravizadas pertenciam a determinado senhor, que poderia dispor delas como bem desejasse, inclusive sexualmente.
“Assim, deprecia a mulher negra e a trata como objeto e propriedade, sendo passível de suportar todo tipo de comportamento”, completa a cartilha.
Substitua por: “Me respeite!”.
21) Nasceu com um pé na cozinha
É utilizada para demonstrar que alguém possui entre seus antepassados uma pessoa negra. Pressupõe que o espaço ocupado por uma pessoa negra em uma casa seria apenas o do trabalho doméstico.
Deve ser excluída do vocabulário.
22) Nega maluca
É utilizada para designar um conhecido bolo de chocolate. Porém, deprecia a mulher negra ao associá-la a um produto a ser consumido – uma sobremesa. Também reforça a sexualização indevida da mulher negra e tenta retirar sua capacidade de discernimento e inteligência.
Substitua por: “bolo de chocolate”.
23) Negra com traços finos
Associa a negritude a traços grosseiros e feios. Desse modo, a beleza negra estaria limitada aos que não se parecem com negras e negros.
Deve ser excluída do vocabulário.
24) Negra de beleza exótica
Exótico é tudo aquilo que não é comum, que foge de padrões esperados. Nenhuma dessas características pode ser empregada para designar a cor negra. “É possível falar em pessoas negras belas ou na beleza negra, mas nada há de exotismo nisso”, aponta a cartilha.
Substitua por: “beleza negra”.
25) Negro de alma branca | Preto de alma branca
Transmite a ideia de que não existem, por natureza, pessoas negras que sejam dignas, boas ou exemplares, sendo essas características típicas apenas das pessoas brancas. Para obter tais qualidades, a pessoa negra deveria imitar uma branca.
Deve ser excluída do vocabulário.
26) Ovelha negra
Pretende designar uma pessoa que foge aos padrões e às expectativas sociais. Segundo a cartilha do TSE, sua origem remonta à Antiguidade, quando os animais pretos eram considerados maléficos e, por isso, sacrificados em oferenda. Assim, associa a pessoa negra a coisas ruins, desvirtuadas ou inaceitáveis.
Substitua por: “rebelde” ou “ovelha desgarrada”.
27) Quando não está preso está armado
Usada para designar cabelos crespos, faz referência aos cabelos lisos como referência de beleza e associa o negro ao ambiente da criminalidade.
Deve ser excluída do vocabulário.
28) Samba do crioulo doido
Remete à música de mesmo nome composta por Stanislaw Ponte Preta (1968). O termo passou a ser utilizado para designar algo que não tem sentido ou um ambiente desorganizado e confuso. Assim, associa essa ideia de bagunça à pessoa negra.
Substitua por: “confusão” ou “bagunça”.
29) Serviço de preto
Significa trabalho feito de forma inadequada, incompleto, de baixa qualidade, o que embute a ideia de que apenas pessoas brancas podem realizar um trabalho bem executado. Também pode significar trabalho pesado, braçal e que não exige intelecto. Nesse caso, subentende-se que pessoas negras somente são capazes de exercer funções que necessitam de força física.
Deve ser excluída do vocabulário.
30) Teta de nega
Refere-se a um doce de chocolate recheado com merengue ou marshmallow. O nome faz uma comparação chula do formato do doce com o seio de uma mulher negra. Assim, hipersexualiza a mulher negra ao associá-la a um produto – sobremesa – a ser consumido.
Substitua por: “Nhá Benta” (seu outro nome, que é uma referência à personagem Dona Benta, de Monteiro Lobato) ou “doce de chocolate recheado com marshmallow”.
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