A linguagem neutra é uma forma de se comunicar de maneira inclusiva e evitando estereótipos de gênero. Seu objetivo, entre outros, é evitar o apagamento do feminino nos espaços e reconhecer a existência de pessoas não-binárias – que não são, ou não são o tempo todo, homem ou mulher.

Para isso, usa-se o sistema elu ou ile – “elu jantou”, “ile jantou” –  além de prefixos neutros “e” e “u” para evitar indicações de gênero. Como em: bonite, europeie, japonesu e portuguesu. Também se evita o uso do masculino genérico para se referir a um grupo de pessoas, como  “os professores”,  “os policiais”.

Entender a necessidade da linguagem neutra exige reconhecer que a língua reforça estereótipos e desigualdades. No caso, o uso do masculino genérico invisibiliza o feminino e pessoas que não estão dentro no binarismo de gênero, além de elevar o gênero masculino ao padrão de referência da humanidade.

 “A língua é poder: construímos significações de quem somos como sociedade na e por meio da linguagem”, resume a doutora em linguística e coordenadora da comissão de diversidade, inclusão e igualdade da Associação Brasileira de Linguística (CDII-Abralin), Jorcemara Cardoso. Ela é autora dos canais Empoderamento Linguístico no Instagram e YouTube.

“A linguagem neutra traz visibilidade para outras formas de existência e também para as relações de poder e desigualdades que organizam a nossa forma de nos comunicar”, completa Lux Ferreira Lima, que tem doutorado em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) com foco em estudos de gênero.

A seguir, especialistas esclarecem as 16 principais dúvidas sobre o assunto.

1) Afinal, o que é a linguagem neutra?

É uma forma de se comunicar de maneira inclusiva, evitando termos ou expressões que possam ser discriminatórios ou reforçar estereótipos de gênero. “É um modo de comunicar que evidencia, questiona e propõe alternativas à binarização de sujeitos e a ideias presentes na língua”, compartilha Lima.

2) Por que a língua neutra surgiu?

Ela tenta reverter pelo menos dois mecanismos discriminatórios. O primeiro é o uso do gênero masculino como padrão para se referir a um grupo de pessoas, o que gera o apagamento do feminino nos espaços e eleva o masculino a condição de referência e valor.

O segundo é a binaridade de gêneros – masculino e feminino – quando também há pessoas não-binárias existindo em sociedade, motivo pelo qual a linguagem neutra também é chamada de linguagem não-binária. “Assim, ela traz visibilidade para outras existências e convida a refletir sobre esses sistemas de desigualdade da língua”, completa Lima.

3) A língua pode promover estereótipos?

Sim. “A língua é poder: construímos significações de quem somos como sociedade na e por meio da linguagem”, ensina Cardoso.

“A linguagem se baseia em estereótipos. Falar uma língua é ter um pré-juízo e uma pré-classificação das coisas do mundo e, portanto, pode acentuar discriminações de todo tipo”, reforça o linguista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Marcello Modesto.

Como exemplos práticos de discriminações na língua, Lima lembra de termos que trazem valor negativo para raças e etnias, como o uso pejorativo da palavra negro em expressões como ‘mercado negro’; e ‘programa de índio’, que também manifesta racismo. “Nossa forma de comunicação e de atribuir sentidos é marcada por desigualdades”, diz Lima.

4) Como posso usar a linguagem neutra?

“Até o momento, ela se dá na troca do -o(s) e -a(s) por -e(s) no final de palavras que se referiam somente a pessoas, e não a coisas e objetos. Há os pronomes pessoais como Elu, Ili, El, Ilu e cada um deles possui seu sistema de outros pronomes”, ensina Cardoso, que indica os manuais da Frente Trans Unileira e da Diversity BBox para aprofundamento do tema.

Além do uso de novos pronomes, a linguagem neutra também engloba a chamada “linguagem inclusiva”, que estimula a utilização de palavras que já existem no português para neutralizar o gênero.

5) Qual a diferença da linguagem neutra para a linguagem inclusiva?

A principal diferença é que a linguagem inclusiva não usa novos pronomes. “A linguagem inclusiva tenta diminuir as distinções de gênero usando opções que já existem na língua portuguesa. Como substituir “os mineiros” por “as pessoas de Minas Gerais”, exemplifica Modesto.

“Ao contrário da linguagem inclusiva, a neutra questiona diretamente o binarismo de gênero que estrutura a comunicação”, diferencia Lima.

Outra diferença é que a linguagem inclusiva tenta excluir termos pejorativos referentes a grupos marginalizados, como os que trazem valor negativo para raças e etnias (“mulata”, “lista negra”, “programa de índio”), capacitistas (“mais perdido que cego em tiroteio”, “deu uma mancada”, “não temos braço para fazer isso”), entre outros.

6) O que significa o adjetivo ´neutro´ em linguagem neutra?

“Ele não significa neutralidade social, política ou ideológica, mas ruptura com o binarismo existente sobre as questões de gênero na nossa sociedade”, diferencia Cardoso.

“Isso porque toda a linguagem é também uma manifestação política – por sermos sociais – e ideológica porque não há neutralidade no dizer”, acrescenta.

7) Quais são os argumentos a favor da linguagem neutra?

Trazer visibilidade, respeito e inclusão para grupos que foram marginalizados e também evitar que a língua seja discriminatória.

“A língua, historicamente, serviu como instrumento de dominação para segregar, excluir e silenciar grupos. Respeitar a forma como as pessoas se constituem na e pela linguagem deveria ser um direito. Não nos cabe determinar como alguém se percebe e se vê pertencente à língua, mas respeitar”, avalia Cardoso.

“O que me parece favorável ao uso da linguagem neutra e inclusiva é o fato de o falante demonstrar preocupação com a visibilidade e a vida das pessoas trans”, completa Modesto.

8) Quais são os argumentos contrários?

O primeiro é a suposta “preservação da norma culta”. “A língua, alçada como patrimônio nacional, precisaria ser preservada dos que a querem ‘corromper’ ou ‘empobrecer’. Esse argumento, porém, deixa de fora: essa norma espelha e privilegia quais grupos da sociedade?”, questiona Cardoso.

Além disso, a língua é viva e está em constante mudança. “Não falamos o mesmo português do século XVII”, exemplifica Lima.

O segundo argumento é que a linguagem neutra seria uma imposição de uma minoria. “Não há projeto de lei ou qualquer reivindicação do movimento não-binário de impor o uso dessa linguagem”, esclarece Cardoso.

“Não é questão de reprovar o uso de determinados termos do português. A linguagem neutra envolve testes e experimentações para incluir mais pessoas e nos convida a pensar as questões de gênero”, tranquiliza Lima.

9) É gramaticalmente correto usar a linguagem neutra?

“Temos uma visão hegemônica e mitológica da gramática como prescrição e normas quando há vários tipos de gramática: comparativa, histórica, do português falado, discursiva etc.”, explica Cardoso.

“Entendemos o funcionamento de uma língua a partir da regularidade de seus usos e de suas estruturas. Então, se faz sentido, funciona e cabe na estrutura do português brasileiro, não há nada, do ponto de vista linguístico, que invalide ou impeça a linguagem neutra”, conclui.

“Se você acredita que quem define a gramática são gramáticos consagrados, então o uso da linguagem neutra é incorreto. Como linguista, digo que não existe essa coisa de ‘gramaticalmente correto’: as pessoas simplesmente falam como falam”, lembra Modesto.

10) É possível mudar o português?

A mudança é uma das características da própria linguagem. “Uma língua que não muda é uma língua morta ou que deixou de ser falada porque seu povo foi exterminado, como aconteceu com inúmeras línguas indígenas no Brasil”, denuncia Cardoso.

“Basta lembrar as diversas mudanças que aconteceram na língua e que posteriormente foram incorporadas à norma culta”, completa Lima.

11) A discussão da linguagem neutra acontece apenas no Brasil?

Não. Espanhol, inglês, alemão e italiano são algumas línguas que travam as mesmas discussões. “A estrutura de um idioma pode tornar esse movimento mais fácil do que em outros. Caso de inglês, que tem pronomes neutros, em comparação às línguas latinas, que possuem mais marcadores de gênero”, compara Lima.

12) Por que retirar a linguagem neutra de materiais escolares foi considerado ilegal em julgamento do Supremo Tribunal Federal  (STF) de fevereiro de 2023?

Apesar de os estados terem competência para legislar sobre educação, eles devem obedecer ao que é normatizado pela União. “Outros argumentos foram de que qualquer lei que busque proibir ou impor mudanças no idioma será ineficaz, devido ao caráter dinâmico da língua. E que cabe ao Estado reconhecer identidades e nunca de constituí-las. Dessa forma, ao proibir que a pessoa se expresse livremente, corre-se o risco de atentar contra sua dignidade”, conta Cardoso.

13) Por que se deve evitar o uso  do ‘x’ e ‘@’ ao final dos pronomes e adjetivos na linguagem neutra?

Eles podem não ser lidos por softwares de leitura para deficientes visuais, tornando-se menos inclusivos. Por isso, foram substituídos pelo sistema elu/ile.

14) É normal estranhar a linguagem neutra?

Sim. “Como em qualquer forma de linguagem que entramos em contato pela primeira vez, e são muitas no decorrer da vida, é preciso aprender suas estruturas e saber quando e como utilizá-la’”, justifica Cardoso.

“A linguagem neutra também revela normas de gênero que tomamos como naturais, o que também gera desconforto”, acrescenta Lima.

15) A linguagem neutra é uma moda?

Não. Segundo Lima, discussões sobre tornar a língua mais inclusiva acontecem há séculos. “Porém, esse jeito de pensar que coisas são atemporais e permanentes é um pressuposto hetero-cis-normativo usado para atribuir valor ou desvalor a algo. Testar novas formas de expressão não faz com que elas sejam falsas. Mesmo que tais questionamentos não façam sentido ou não sejam incorporados para sempre, o convite à experimentação e a testagem é rico para a experiência humana”, opina Lima.

16) O problema com a linguagem neutra é apenas linguístico?

 “Talvez a questão seja menos uma problemática linguística ou de ‘preservação da língua nacional’ e mais o medo que certos grupos possuem de perderem privilégios que se perpetuam historicamente na e pela linguagem. Privilégios cujo padrão é branco, masculino, cis-heteronormativo e de classes dominantes”, reflete Cardoso.

“Basta nos perguntarmos quais os ‘desvios’ que incomodam quando o assunto é a língua e quais não incomodam. ‘Você’ é um pronome pessoal neutro”, compara.

“A reivindicação pela linguagem neutra não é sobre gramática ou norma culta, mas sobre outras formas de existir. De questionar que as coisas sempre foram de um jeito, mas podem mudar para serem mais justas e diversas. É mais um convite à abertura e reflexão do que qualquer coisa”, finaliza Lima.

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Atualizado em 25/06/2024, às 12h34.

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