Não se sentir pertencente ao gênero masculino ou ao feminino é uma definição da não-binaridade, mas sua explicação vai além.“É uma forma de ser, de organizar o pensamento e entender o mundo. Quando se diz ‘eu gosto de maçã’, isso não significa que não gosto de pêra ou que eu vou gostar de maçã o resto da vida. Da mesma forma, a experiência de gênero não precisa ser permanente ou excludente”, explica Lux, que tem 34 anos e doutorado em antropologia pela Universidade de São Paulo (USP) com foco em estudos de gênero.

Lux (crédito: acervo pessoal)

“Como ouvi certa vez da organizadora do MariaLab, Fernanda Monteiro, masculino e feminino não são caixas fechadas, mas nebulosas, de diferentes densidades, que permitem trânsito: pode-se performar masculinidade, feminilidade ou nenhum dos dois”, resume. Para Lux, o processo de conhecer e de se identificar com a não-binaridade ocorreu após ler a biografia de pessoas trans que recusavam assumir um gênero. “Às vezes, é preciso ver outras pessoas que vieram antes para você entender que você também pode existir daquela maneira. Eu consegui lidar e dar sentido à minha vida por meio da história de outras pessoas”, compartilha.

Caminhos possíveis

A artista Dandá Costa, de 32 anos, foi criada como menino e descobriu a não-binaridade em um processo que se iniciou na infância, quando foi repreendida por usar roupa e acessórios socialmente lidos como femininos. “Entendi naquele momento que não me enquadrava nos fatores que compõem socialmente o que é ser homem e que eles excluíam as coisas que eu gostava”, lembra.

Dandá Costa(crédito: Luisa Savala)

Anos mais tarde, estudando gênero, ela se abriu para a possibilidade de viver uma existência não-binária em um processo gradativo. Passou a incluir vestimentas lidas socialmente como femininas no seu dia a dia e retirou a barba. “Por muito tempo, subalternizei a percepção que eu tinha do meu corpo ao que os outros esperavam de mim. Sem barba, percebi que meu corpo estava mais em trânsito em termos de gênero do que eu pensava”, revela.

A cantora e poeta Helena Ressoa, de 33 anos, conta que passou a vida em busca de identidade. Sua identificação como não-binaria foi potencializada por meio do contato com a cultura política e afirmativa de um grupo de drag queens de Belém (PA). “Por terem seus corpos demonizados cotidianamente na cidade, elas se apropriaram desse termo como forma de poder e se chamam de ‘themonias’. Ainda hoje digo que sou uma ‘themônia’ trans não binária”, explica.

Helena Ressoa (crédito: Gabriel Tantacoisa)

Helena conta que se expressar por meio de roupas lidas socialmente como femininas e masculinas traz situações de violência.“Ao sair para trabalhar, olham-me torto, chamam-me de vagabundo ou palhaço. As pessoas não recebem bem quando você retira esse conceito binário. Pensam que o que entendem por gênero precisa ser eterno”, compartilha.

Experiência similar à de Dandá. “Deixei de ser bem-vinda em lugares que frequentava, houve constrangimentos em processos seletivos, perda de trabalhos, além das ofensas na rua”, relata.

Lux ainda cita como violência os programas e filmes que ridicularizam a não- binaridade, as tentativas de criminalizar a linguagem neutra e o discurso que diz ser a não-binaridade uma fase.“A piada faz a gente se sentir desprezível e contamina a nossa subjetividade. Já a tentativa de criminalizar a linguagem neutra busca impedir que o debate chegue a mais pessoas e mostre que é possível outros lugares de gênero diferentes da norma”, analisa.

A seguir, convidamos pessoas não-binárias a esclarecerem 10 dúvidas recorrentes sobre o tema.

1. O que significa ser não-binário?

O primeiro passo é entender gênero como algo construído socialmente. “Somos moldadas a ter um gênero de acordo com o órgão biológico com o qual nascemos”, explica Dandá. Na sociedade contemporânea, masculino e feminino são tidos como as duas únicas possibilidades de gênero e são excludentes. Quem nasce com pênis receberá vestimentas e tratamentos lidos socialmente como masculinos e, quem nasce com vagina receberá elementos tidos como femininos.

“Um exemplo de como isso é problemático é quando uma criança nasce intersexo e buscam operá-la para criá-la como menino ou menina. A interssexualiade é apagada da sociedade”, exemplifica Dandá. Nesse contexto, ser não-binário é não se sentir pertencente ou recusar viver um dos dois gêneros. “É não caber em nenhum gênero, não ser homem ou mulher. “Você pode transitar entre esses dois pontos ou abandonar ambos de várias maneiras, como ser agênero”, explica Dandá.

2. Ser não-binário é uma identidade?

Identidade é a forma como a pessoa se percebe no mundo. Assim, a não-binaridade pode ser entendida como uma. Algumas pessoas não-binárias, no entanto, recusam essa definição por uma questão política: a identidade seria vista como uma coisa cristalizada e a não-binaridade implicaria em fluidez.

“Porém, a identidade pode ser algo em constante transformação e que não precisa ser permanente”, contrapõe Lux. Outro ponto é que a não-binaridade é tida como uma identidade de gênero “guarda-chuva”, acolhendo em seu interior diversas percepções de gênero, como gênero fluido, agênero, entre outras .

3. Ser não-binário e ser gênero fluido são a mesma coisa?

Não. Nem todo não-binário é gênero fluído. “Por ser uma identidade ‘guarda-chuva’, a não binaridade inclui pessoas que transitam entre os dois gêneros (gênero fluido) mas também quem recusa ambos (agênero)”, explica Lux.

4. Pessoas não-binárias são trans?

Sim, mas não é consenso. Ser trans é não se identificar com o gênero atribuído ao nascer. Assim, uma pessoa pode ser trans e se identificar como mulher, como homem, transitar entre os dois gêneros ou recusar ambos. “A transgeneridade também é um termo guarda-chuva, que abriga outros”, complementa Lux.

4. Como uma pessoa se descobre não-binária?

Não há uma regra. Há desde pessoas não-binárias que já não se sentiam pertencentes ao gênero que lhe foi atribuído desde criança, como aquelas que entenderam a sua identidade após adultas.

5. A não-binaridade é moda?

Não. Outras culturas não praticavam a divisão entre gênero masculino e feminino. Exemplos são as muxes, no México, e aravanis, na Índia. Lux, porém, questiona o uso do termo “moda”, como algo passageiro, na tentativa de desqualificar a não-binaridade.

“Mesmo que fosse algo do presente e que não tivesse registros históricos – algo que se tem – essa lógica de que o passageiro é menos legítimo do que a permanência é binária. Traçando um paralelo, o que garante que um casamento de 50 anos foi mais relevante para uma pessoa do que um encontro que durou algumas semanas?”, compara.

6. Como devo me dirigir a uma pessoa não-binária?

Pergunte sobre o pronome pelo qual a pessoa não-binária gostaria de ser chamada. Lux, por exemplo, prefere o gênero neutro; Dandá gosta de ser chamada pelo gênero neutro ou feminino e Helena não demanda gênero. “Sinto-me bem se me chamam no masculino, feminino ou neutro”, explica.

7. O que é a linguagem neutra?

A língua portuguesa tem como referência o masculino genérico, principalmente quando usamos o plural. É o caso quando se fala “coordenadores”, “governadores” ou “professores”. “Já a linguagem neutra busca uma comunicação não marcada pelo gênero”, aponta Lux.

Há dois modos de praticá-la. A primeira é utilizar pronomes novos e neutros (elu/delu) e alterar o gênero das palavras (“namorades”, não-bináries”). A segunda é usar termos já existentes em português de forma inclusiva. Nesse caso, ao invés de dizer bem-vindos, por exemplo, pode se dizer “dou as boas vindas”. Esse debate não é exclusivo da não-binaridade, mas de toda a sociedade, uma vez que o masculino genérico pode apagar a participação feminina.

8. Qual a orientação sexual de uma pessoa não-binária?

Orientação sexual diz respeito ao gênero pelo qual uma pessoa se atrai. Na prática, a pessoa não binária pode se sentir atraída por uma pessoa de um gênero específico (masculino ou feminino) ou por outras não-binárias.

“A não-binaridade, porém, torna esse debate mais interessante porque, se eu não tenho um gênero marcado, não sou masculino ou feminino, como posso dizer que minha atração é pelo gênero oposto (heterossexual) ou pelo mesmo gênero (homossexual)? Ou seja, ela também altera esse marcador”, ensina Lux.

9. É a aparência que mostra que uma pessoa é não-binaria?

Não. “A forma como a gente lê a aparência de alguém está enviesada dentro de uma lente binária. Por exemplo, pode-se classificar um determinado corte de cabelo como masculino, um tipo de voz como feminino etc. Isso leva a enganos”, diz Lux.

10. Qual a relação entre a não-binaridade e ser queer?

O queer vem historicamente se colocando como um movimento contra-identitário, como uma recusa à categoria identidade. A não-binaridade, ao questionar a lógica social dividida entre masculino e feminino, também questiona a lógica identitária. “São dois movimentos que se articulam”, explica Lux. Assim, é comum muitas pessoas não-binárias também se afirmarem politicamente como pessoas queer.

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Atualizado em 23/03/2023, às 10h07

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