A linguagem capacitista é aquela que carrega significados equivocados ou pejorativos em relação à pessoa com deficiência (PCD). Ao perpetuar preconceitos e estereótipos, tal linguagem contribui com a exclusão, como explica a professora do Laboratório de Educação Inclusiva (LEdI) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Geisa Kempfer Bock.

“A linguagem pode hierarquizar formas de ser e de se estar nesse mundo, como se houvesse corpos mais dignos de viver em sociedade do que outros. São termos que possuem como referência um corpo normativo que é heterossexual, branco, cisgênero e sem deficiência. Assim, tudo o que foge desse perfil passa a ser retratado como sub-humano ou risível por meio de palavras e expressões”, afirma.

“Palavras não são mera questão semântica: elas carregam significados e contam histórias. Assim, o capacitismo nem sempre vai se manifestar por meio de uma ofensa, mas por palavras e expressões cotidianas”, acrescenta a doutora em psicologia e psicóloga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC) Karla Garcia Luiz.

Por sua vez, eliminar do vocabulário palavras e expressões capacitistas é uma ferramenta de inclusão.

“O comportamento das pessoas em relação à deficiência é afetado pela linguagem. Quando se troca termos e expressões capacitistas, esse comportamento pode mudar também”, opina a atriz e consultora de inclusão Tabata Contri.

“A forma como damos significados às palavras diz sobre como tratamos as pessoas”, reforça Luiz.

Abertura para mudar

O processo de rever as palavras e termos capacitistas que empregamos no dia a dia exige comprometimento e estar aberto a mudanças.

“Tais expressões são culturais e estruturais, ou seja, a gente aprendeu a usá-las na nossa socialização com a família, na mídia, nas conversas com os amigos etc. É preciso estar disponível para desaprender e reaprender uma linguagem inclusiva”, recomenda Contri.

A mudança também é um exercício de empatia. “Uma palavra que você utiliza e lhe soa inofensiva pode machucar uma pessoa com deficiência”, acrescenta.

Como a língua está sempre em movimento, manter um vocabulário não capacistista exige atualizar antigos termos que foram substituídos por opções mais inclusivas.

“Durante muito tempo, por exemplo, foi aceitável chamar uma criança com deficiência como ‘defeituosa’, o que hoje é impróprio”, ilustra Contri.

“Muitos termos já foram compreendidos como razoáveis em determinado momento da história e serviram para designar a deficiência de alguém. O uso de determinadas palavras é abolido na medida em que avançamos no significado que damos a um determinado grupo social”, esclarece Luiz.

A seguir, listamos 27 expressões, palavras, comentários e perguntas capacitistas bastante presentes no cotidiano e nas redes sociais que devem ser substituídos ou eliminados. 

EXPRESSÕES

Fingir demência

Problemas de memória e discernimento são condições não escolhidas ou simuladas, assim não devem ser vinculadas a uma atitude ou comportamento.

“A expressão coloca quem tem uma experiência neurológica, intelectual e emocional atípica como inferior e satirizável, excluindo a neurodiversidade presente na sociedade”, justifica Bock.

Substitua por: fingiu não entender; deu uma de desentendido. 

Mal das pernas

A expressão usa a deficiência como sinônimo de insuficiência, o que é um equívoco.

“Uma pessoa em uma cadeira de rodas, por exemplo, pode chegar mais longe do que outra sem deficiência quando não há barreiras físicas e atitudinas. Porém, esse tipo de comparação somente é feito quando há um intuito de inferiorizar quem é PCD, nunca para ressaltar suas capacidades”, analisa Bock.

Substitua por: não tenho tempo ou condições materiais para isso. 

Não ter braço para algo

Também utiliza a deficiência como sinônimo de insuficiência. “Não ter membros não é uma experiência negativa ou incapacitante, mas as barreiras físicas e comportamentais, sim”, ensina Bock.

Substitua por: não tenho tempo ou condições materiais para isso. 

Deu uma de João sem braço

A ausência de um braço é uma condição física, não um comportamento. Assim, não implica em evitar responsabilidades ou ter preguiça.

Substituta por: fingiu não entender; foi preguiçoso; fugiu da responsabilidade.

Dar mancada

“Usa a deficiência ou a falta de membros como uma maneira de descrever um erro ou fracasso”, explica Bock.

Substitua por: vacilou; cometeu uma gafe; errou; não teve responsabilidade ou não teve comprometimento. 

Mais perdido do que cego em tiroteio

Coloca a pessoa sem visão como incapaz de perceber situações.

“Será mesmo que a pessoa cega não teria, usando a audição, uma melhor percepção de onde partiu um tiro? A lógica capacitista faz a gente destacar sempre o lugar negativo, e não positivo da experiência”, lembra Bock.

Substitua por: estava perdido; me senti perdido.

Você tá cego?  Você tá surdo?

Coloca a pessoa sem visão ou audição como incapaz de perceber situações.

Substitua por: você entendeu o que eu falei?

Fulano(a) tem visão

Eleva a visão à condição essencial para interpretar uma situação.

Substitua por: tem percepção, conhecimento, consciência ou compreensão; tem perspectiva de futuro; tem capacidade de planejar com antecedência.

Não enxerguei esse problema

Eleva a visão à condição essencial para interpretar uma situação.

Substitua por: não identifiquei; não percebi esse problema. 

PALAVRAS E TERMOS

Louco; doido; surtado

Enfatiza que ter uma condição de saúde mental é algo negativo ou risível. Desumaniza pessoas com essa condição, reduzindo-as à sua condição e excluindo suas potencialidades. Perpetua estereótipos de que pessoas com doenças mentais são perigosas, imprevisíveis ou incapazes de contribuir com a sociedade.

Substitua por: incomum; estranho; incompreensível; original; imprevisível (dependendo do contexto). 

Lesado; idiota; retardado

 “São termos que migraram do discurso da biomedicina para serem usados para desvalorizar pessoas com deficiências cognitivas ou intelectuais”, pontua Bock.

Reforçam que ter uma deficiência cognitiva ou intelectual é ruim e motivo de zombaria. Reduz pessoas nessa condição à sua deficiência e reforça estereótipos de que não possuem outros potenciais.

Substitua por: desinformado; ingênuo; inexperiente; desligado ou desatento (dependendo do contexto). 

Normal (como antônimo de deficiente)

A ideia de normalidade é subjetiva e culturalmente determinada, variando de sociedade para sociedade e ao longo do tempo. “O que é normal para mim pode não ser para você. Após 22 anos vivendo como cadeirante, essa condição é normal para mim”, ilustra Contri.

Além disso, implica em afirmar, por associação, que pessoas com deficiência são “anormais”, ou seja, fora do que é considerado aceitável pela sociedade. Isso pode levar à estigmatização, discriminação e marginalização.

Outro dado que questiona essa oposição de deficiência e normalidade é o fato de o Brasil ter 18,6 milhões de pessoas com alguma deficiência, considerando a população com idade igual ou superior a dois anos (IBGE, 2022).

Substitua por: pessoa sem deficiência ou pessoa típica. 

Autista (como adjetivo)

O autismo não é uma condição homogênea, onde todas as pessoas afetadas têm as mesmas características e desafios – motivo pelo qual a nomenclatura mudou para Transtorno do Espectro Autista (TEA).

“Não existe uma única forma de ser autista: a pessoa está dentro de um espectro.  Usar o temo como adjetivo para pessoas que não estão no TEA reduz a pessoa neurodivergente à sua condição”, conta Bock. Além disso, características que são atribuídas aos autistas se fazem presente em maior e menor grau em todas as pessoas da sociedade.

Substitua por: incomum; estranho; incompreensível; original; desligado ou desatento (dependendo do contexto). 

Deficiente

Há dois cuidados com o uso dessa palavra.

“Primeiro, sempre se referir a alguém como pessoa com deficiência, nunca somente deficiente, porque há um sujeito antes da deficiência”, alerta Contri.

O segundo é sobre o uso de deficiente como sinônimo de insuficiência.

“Isso coloca a experiência de ser PCD como algo negativo. Já vi discursos que falavam: ‘se a sociedade tem barreiras, é ela que é deficiente, não você’. Ou seja, a deficiência ainda era colocada como algo pejorativo”, pontua Bock. 

Portador de deficiência

Usado no passado, foi abolido porque pode sugerir que a deficiência é algo que a pessoa carrega ou transporta, o que pode ser estigmatizante.

“Aquilo que você transporta, você pode deixar ou esquecer. Não é o caso da deficiência”, explica Contri. Além disso, o foco do termo era na deficiência, não no sujeito.

Substituta por: pessoa com deficiência.

Especial

“O capacitismo ora relaciona a pessoa com deficiência como insuficiente, ora no lugar do extraordinário – visto no termo ‘especial’. Nunca como algo comum, humano”, explica Bock.

Substituta por: pessoa com deficiência.

Pessoa com necessidades especiais

Usado no passado para se referir a PCDs, o termo foi abolido porque pode incluir outras pessoas e grupos.

“Caso de idosos, pessoas com crianças de colo, com mobilidade reduzida temporariamente, lactantes, gestantes, entre outros. Serve mais para situações de atendimento ou assento prioritário em transporte público”, explica Contri.

Substitua por: pessoa com deficiência (quando se tratar de alguém nessa condição). 

COMENTÁRIO E PERGUNTAS INADEQUADOS

  • Você nem parece autista/cego/surdo;
  • A gente só recebe o fardo que pode carregar;
  • Você é um exemplo de superação; você faz mais do que pessoas sem deficiência;
  • E eu aqui reclamando da vida.

“Em todos esses comentários, há uma tentativa de deslegitimar a deficiência como condição humana: ela é vista ora como fardo, ora como algo que precisa ser superado, ora para confortar pessoas sem deficiência (‘que bom que não sou assim’).

Elas desumanizam PCDs e procuram nos aproximar de uma determinada normalidade, baseada nas capacidades funcionais e estéticas. Como se houvesse um único padrão de corpo”, resume Luiz.

Seus filhos vão nascer normais?

Exemplo do uso de normal como antônimo de PCD. Exclui a diversidade de corpos e perfis de pessoas em sociedade e ignora que a concepção de normalidade é social, cultural e que varia ao longo do tempo.

Para completar, sugere que a deficiência é algo negativo ao apontar um desejo de que o filho de uma PCD não tenha deficiência.

Seu problema não tem cura?  

“Há uma confusão de entender a deficiência como doença, não como condição. Ainda que uma deficiência tenha sido provocada por uma doença – caso de uma cegueira provocada por diabetes – a doença não é a deficiência. Logo, não há o que ser curado”, explica Contri.

Outra inadequação é colocar a deficiência como problema. “Pela Lei Brasileira de Inclusão, o conceito de deficiência é social, não médico.

O problema mesmo são as barreiras físicas, comportamentais, comunicacionais, atitudinais, que reduzem a autonomia da PCD, não a deficiência em si”, conclui Contri.

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