O jornalista Paulo Fabião e a bancária Regiane Batista são noivos e não gostariam de usar aliança. No entanto, optaram pelo acessório para serem entendidos como um casal em situações triviais do dia a dia, como em compras no mercado ou jantares em restaurantes. Isso porque Paulo tem paralisia cerebral e, não raro, sua companheira é tratada por pessoas desconhecidas como se fosse sua cuidadora. “A situação é agravada por sermos um casal inter-racial. Regiane é negra e fica no imaginário que ela só está ali na condição de servir um homem branco”, relata o comunicador com pesar. As situações constrangedoras são recorrentes não só na vida de Paulo e Regiane, mas de muitos casais em que uma das pessoas tem deficiência.
Para os dois, ora as confusões feitas por terceiros são tratadas com bom humor, ora com respostas enfáticas. Como quando um senhor sorridente interrompeu a conversa deles em uma padaria para entregar um escapulário de Santa Catarina de Sena para a jovem. “Ela é a padroeira das enfermeiras”, disse. Ou quando Paulo se ausentou da fila do caixa do supermercado para buscar uma água com gás que havia esquecido. “A mulher que estava atrás de nós disse para mim: ‘meu especial também gosta de água com gás’. Respondi educadamente que se tratava do meu namorado. Foi quando ela disparou: ‘meu filho também namora a cuidadora’”, relembra.
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Infantilização e outros estereótipos
Para Regiane, essas situações ocorrem devido à infantilização da pessoa com deficiência por setores da sociedade. “É como se fossem anjos e impedidos de relações afetivas. Consequentemente, os outros acham que uma pessoa ao seu lado só pode estar ali para dar assistência”, reflete. Também subentendem que se trata de uma relação desigual. “Não é concebido todo o tipo de apoio que meu noivo também me oferece no nosso cotidiano”, exemplifica.
Paulo concorda. “A gente até brinca que nunca poderemos sair com ela usando branco”, afirma. “Não é errado ter dúvidas, mas é fundamental perguntar educadamente e não apenas subentender algo e ser invasivo”, opina ele, lembrando de quando se hospedaram em um hotel e encontraram duas camas de solteiro no quarto. A infantilização também leva pessoas conhecidas e desconhecidos a questionarem se os noivos mantêm relações sexuais. “Quem perguntaria isso a outro casal?”, indigna-se o rapaz.
Na via oposta, casais nessa configuração também são tidos como “exemplo de superação”. “Estávamos apenas jantando quando um restaurante inteiro parou para nos aplaudir”, relembra a bancária. “Nosso primeiro encontro foi via aplicativo de relacionamento. Na volta, rachamos uma corrida. O motorista se emocionou e começou a dizer coisas como: ‘isso que é exemplo de amor verdadeiro’. Bem, a gente mal se conhecia.”, conta.
Relação de parceria
O analista de sistemas Thiago Magalhães e a professora Raquel Fernandes se conheceram há 10 anos por intermédio de uma amiga em comum, que buscava um software de acessibilidade com o qual ele trabalhava. Hoje, casados e pais de um filho de três anos, eles lembram poucas situações em que foram tratados como amigos e familiares por terceiros. Isso porque Thiago é deficiente visual. “Ocorria principalmente no início de namoro”, diz.
O mais recorrente, porém, é ele ser ignorado na hora de fazer o pedido em restaurante. “Os garçons sempre se dirigem a Raquel e esperam que ela o faça por mim”, relata. Para o analista, falta o entendimento de que, como qualquer casal, aquele composto por pessoa com deficiência também tem uma relação de parceria.“A Raquel provavelmente vê em mim outras deficiências que afetam mais nossa relação do que a visual. Como ela também tem as dela. O que acontece é que a gente se apoia e caminha junto”, ressalta.
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A mesma opinião é compartilhada pelo professor universitário Douglas Christian Ferrari de Melo, que contabiliza cinco anos de namoro e quinze de casados com a jornalista Amanda Miranda. Ele tem baixa visão e ela deficiência motora.“É uma configuração de casal rara porque, geralmente, apenas um é deficiente ou ambos têm a mesma deficiência”, aponta. Ainda assim, eles já foram confundidos com irmãos em estabelecimentos comercias. “A sociedade ainda acredita que a pessoa com deficiência não pode casar”, analisa.
“Penso que nossa relação é como qualquer outra, talvez com mais solidariedade. Um completa o outro em suas necessidades: ela me ajuda com a parte visual e eu a ajudo com a mobilidade. Ficamos mais atentos ao que o outro precisa”, relembra. Ao lado deles, junta-se a filha Íris, de 11 anos. “Ela também sempre nos ajuda. Somos como um time”, completa a jornalista. Entre os desafios do casal, eles destacam apenas algumas configurações práticas da arquitetura de sua casa. “Armários rebaixados são ótimos para a Amanda e ruins para mim, já que costumo bater neles. Em contrapartida, a entrada da residência tem verdadeiros holofotes para melhorar a minha visão, mas cuja luminosidade atrapalha a dela”, exemplifica Douglas.
Para os solteiros, Thiago aconselha: ultrapasse os estereótipos na hora de escolher seu parceiro de vida. “Alguns dizem preferir namorar alguém com a mesma deficiência ou sem nenhuma. Porém, não existem regras. O único critério é estar com alguém que te faça feliz”, acredita.
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