Ao receber o prêmio de melhor aluna da faculdade, a tradutora Beatriz Cecilio Bebiano subiu ao palco de cadeira de rodas. Foi quando percebeu olhares de desconforto. “Não era esperado que uma mulher, ainda mais com deficiência, tivesse sido a contemplada”, relembra.
A situação é um exemplo de duas discriminações sofridas por essa população: a de gênero (sexismo) e a subestimação das suas capacidades e aptidões por serem pessoas com deficiência (capacitismo).
O resultado pode ser visto mercado de trabalho. Dados do IBGE de 2010 mostram que mulheres com deficiência possuem menor acesso ao emprego (38%) do que as sem deficiência (46%) e homens com deficiência (57%).
“Também ocupamos menos postos de trabalho formal, pois nossos corpos são percebidos como fora de um padrão estético do que se espera na nossa cultura, bem como percebidos fora de um padrão de produtividade capaz de gerar lucro para as empresas”, complementa a psicóloga e integrante do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, Laureane Costa. A iniciativa tem como proposta estimular um debate político que considere gênero e deficiência, além de combater outras formas de opressão.
A estudante Nelyne Mota, também membro do coletivo, aponta que a capacidade profissional e social da mulher com deficiência é constantemente colocada à prova.
“Soma-se a isso a pouca representatividade em espaços de decisão. E não é por falta de profissionais ou de qualificação”, denuncia.
Para completar, quando uma mulher com deficiência se destaca, sua deficiência geralmente é excluída da narrativa. Bebiano cita como exemplo a pintora surrealista mexicana, Frida Kahlo. “Há blusinhas que a retratam pedalando, sendo que sua deficiência não permitia isso. Ou seja, mesmo quando elas são relevantes, a deficiência delas não importa. É invisibilizada”, lamenta.
Violência e infantilização
De acordo com dados de 2016 do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), pessoas com deficiência (PCD), independente do gênero, possuem três vezes mais chances de sofrer violência física, emocional ou sexual.
“Fazendo a intersecção gênero e deficiência, mulheres com deficiência possuem dez vezes mais chances de sofrer violência sexual, além de esterilização e aborto forçados”, diz Costa citando dados do UNFPA.
Vulnerabilidade financeira e dependência física de cuidadores colaboram com esse quadro. Além disso, estima-se que agressores vejam a mulher com deficiência com menos força física para reagir ou condições de relatar o crime – como no caso das surdas.
A infantilização também é comum. “Como ser anulada pelos cuidadores, que passam a fazer escolhas por ela, como decidir o que vestir ou comer”, denuncia Mota.
“Pedi uma bebida em um bar, com amigos, e o garçom questionou se ‘eu tinha certeza’ sobre aquilo”, relata Bebiano.
A tradutora, que namora há três anos um homem sem deficiência, também observa os olhares quando os dois estão juntos em público. “Como se ele não devesse me tratar como namorada, que é o que sou, mas como irmã”, revela.
Ela também já ouviu coisas como “que sorte que você tem dele namorar você. “Colocam meu namorado em um pedestal. Claro que ele tem inúmeras qualidades e merece ser elogiado, mas não, necessariamente, por namorar comigo”, diferencia.
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Para completar, há situações em que as pressões sociais do que se espera do sexo feminino se choca com os estereótipos da PCD.
“Por ser mulher, ‘tenho’ que ser mãe. Mas como tenho deficiência, sou vista como incapaz para a maternidade. Ou seja, serei julgada de todo jeito”, exemplifica Bebiano.
Luta pela voz
Entender-se como mulher com deficiência é um processo longo, como conta Mota, que possui uma doença degenerativa neuromotora. “Quando você começa a perceber o quanto nossa sociedade não oferece acessibilidade, cai a ficha.”
A invisibilidade, contudo, é comum nos movimentos sociais. “Historicamente, as questões de gênero foram negligenciadas pelos movimentos de pessoas com deficiência, e as questões da deficiência foram negligenciadas nos movimentos das mulheres por equidade de gênero”, contextualiza Costa.
“Movimentos negros, LGBTI+, de mulheres, não pensam nas PCDS”, pontua Bebiano.
A psicóloga Costa tem atrofia muscular espinhal e descobriu o pensamento feminista no ensino médio.
“Compreendidas as opressões, é fundamental traçar estratégias para combatê-las, e isso não se faz na solidão. Consciente disso, preenchi o formulário para participar do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência”, conta.
A iniciativa ajudou mulheres como a jornalista e escritora Mariana Rosa, que possui baixa visão. “Entendi que precisava dialogar com meus pares como parte do meu processo de busca por saúde e por atuação responsável no mundo em que vivemos”, justifica.
Para transformar a situação no futuro, Costa sugere que as empresas parem de alegar falta de qualificação das pessoas com deficiência para o trabalho, pois não é verdade, garantam postos de trabalho, remuneração justa e plano de carreira para essa população.
Já para as pessoas sem deficiência, Bebiano indica três passos. “Exercitar a escuta, a empatia e também ter iniciativa para mudar a situação. Sem ações concretas, as duas primeiras não adiantam”, alerta.
Crédito da imagem principal: Leticia Garcia