Uma prática comum nas delegacias brasileiras é a vítima tentar reconhecer o suspeito do crime em um álbum de fotografias. “Não há um levantamento sobre a frequência do uso desse instrumento no país. Porém, sabemos que é corriqueiro pelas denúncias de arbitrariedades em diversos estados e, no estado Rio de Janeiro, pelo esforço da sua defensoria pública em coletar dados”, contextualiza o coordenador do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), Pablo Nunes. O procedimento, porém, revelou-se fonte de erros e injustiças.
É isso que aponta o presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Hélio Leitão: “O roteiro previsto pelo artigo 226 do código penal é descumprido. Por ele, a vítima descreveria fisicamente o suspeito para, depois, esse ser colocado presencialmente ao lado de outras pessoas fisicamente semelhantes. A forma feita atualmente acaba sugestionando o apontamento da vítima”.
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“As fotos desses álbuns também são antigas e em baixa resolução. Além disso, a memória humana é falha e pode esquecer detalhes importantes, motivo pelo qual procedimentos assim precisam de cuidados”, acrescenta a coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lucia Helena de Oliveira. Ela avalia que o resultado é a prisão de inocentes e acusações injustas. Um relatório de 2020 da Defensoria Pública Estado do Rio de Janeiro apontou pelo menos 58 casos assim. “Isso traz prejuízo social e psicológico para a vida da pessoa processada injustamente”, pontua Oliveira.
Racismo estrutural
Há ainda o vínculo da prática com o racismo estrutural. Segundo o mesmo relatório, 70% dos acusados injustamente eram negros. Outro levantamento do Colégio Nacional de Defensores Públicos-Gerais (Condege, 2021) reforçou que negros são 83% dos acusados. “É um vínculo estreito, basta notar a cor de pele das pessoas dos álbuns. Há, ainda, casos de pessoas negras sem antecedentes criminais que tiveram imagens de redes sociais adicionadas ao álbum, sendo posteriormente acusadas”, denuncia Nunes.
Situação vivida pelo violoncelista Luiz Carlos Justino, preso em uma blitz da Polícia Militar (PM), em 2020, e informado de uma acusação por assalto à mão armada de 2017.”Por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria ‘desconfiança’ para constar em um álbum? Como essa foto foi parar no procedimento?”, questionou o juiz na sentença de absolvição. “Há a construção e perpetuação de estereótipos de criminosos como sendo da população jovem, negra e periférica”, assinala Leitão.
Mesmo quando o acusado já teve passagem pela polícia, há arbitrariedades. “Não raro a pessoa foi absolvida do crime ou já cumpriu sua dívida com a sociedade após julgada culpada. O problema é: uma vez com foto no álbum, até quando esta pessoa deve ser considerada suspeita?”, questiona Oliveira. “Você estigmatiza esse cidadão para o resto da vida, tornando-o alvo preferencial do sistema penal”, denuncia Leitão.
De acordo com Oliveira, o procedimento viola direitos humanos: “Você fere a presunção da inocência e, no caso de pessoas acusadas, o direito à liberdade”. Para Nunes, o procedimento não contribui para a segurança pública. “Menos de 10% dos homicídios são investigados e solucionados no Brasil. O reconhecimento por fotografia reforça tal cultura de não-investigação e de falta de provas contundentes no sistema criminal. Deveríamos investir em mais inteligência e investigação de qualidade”, avalia.
Nova cultura
Em setembro de 2021, a Sexta Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) estipulou duas mudanças no reconhecimento por fotografia: o roteiro previsto no artigo 226 deixa de ser apenas orientação e se torna obrigatório, e apenas fotos não podem basear uma acusação, necessitando do amparo de outras provas.
“Espera-se, agora, a instalação de uma nova cultura investigativa e que a mudança na justiça mude a ação policial”, analisa Leitão. Até lá, pessoas acusadas injustamente por reconhecimento fotográfico devem buscar advogado e, caso não tenham condições financeiras, a defensoria pública.
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“Para as vítimas, a orientação é fazer esse reconhecimento quando tiver absoluta certeza e se expressar com clareza e cuidado”, aponta Oliveira. Para ela, agentes do estado necessitam de ponderação e serenidade no processo: “Caso contrário, contribuímos todos com a prisão de inocentes”.
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Atualizado em 16/11/2021, às 16h08