No Brasil, a Lei de Cotas (nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na educação superior. Ela foi resultado de uma década de debates, que tiveram início com a participação do país na III Conferência contra Xenofobia e Discriminação, em Durban, na África do Sul, em 2001.
“A delegação brasileira, nessa Conferência, liderada pela Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, com uma grande representação dos movimentos sociais, principalmente negros e negras, quando volta para o Brasil, assume oficialmente o racismo e, como assinou a declaração de Durban, começou a trabalhar sobre as questões de cota”, explica o professor titular aposentado do departamento de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Kabengele Munanga.
Avanços da lei de cotas
Referência sobre a questão racial e a importância das políticas de ações afirmativas, o pesquisador foi ouvido neste podcast para avaliar os avanços trazidos pela regulamentação, que determina que as universidades, institutos e centros federais reservem 50% das suas vagas para estudantes oriundos de escola pública, sendo parte delas destinadas a estudantes negros e indígenas.
“Tem universidades brasileiras que, a partir das cotas, tiveram mais negros do que em todo tempo de sua existência. Então, as cotas são importantes em termos de inclusão de jovens negros e indígenas na universidade. É um processo que vai exigir mais tempo, por isso que se luta hoje para manutenção em termos de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras”, defende Munanga, diante da revisão prevista para acontecer até agosto e das ameaças de mudanças na legislação, que são comentadas no áudio pelo professor.
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Kabengele Munanga:
Tem universidades brasileiras que, a partir das cotas, tiveram mais negros do que todo tempo de sua existência. Então, as cotas são importantes em termos de inclusão de jovens negros e indígenas na universidade. Então, é um processo que vai exigir mais tempo, por isso que se luta hoje pra manutenção em termos de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras.
Meu nome é Kabengele Munanga, professor titular aposentado do departamento de antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. E sou natural de um país que se chama República Democrática do Congo, brasileiro naturalizado, vivo aqui no Brasil há 46 anos. Aqui construí toda minha carreira científica-intelectual na área das relações raciais, onde me envolvi com a questão do negro na sociedade brasileira.
Vinheta: Instituto Claro – Cidadania
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
Quais os avanços que a Lei de Cotas nas universidades trouxe nos últimos anos? Por que ela está ameaçada após uma década de sua vigência? Essas e outras respostas envolvem a dimensão que as políticas de ações afirmativas têm no Brasil.
Kabengele Munanga:
Porque você não resolve os problemas da sociedade simplesmente com as leis, com a educação, tem que implementar políticas de inclusão daqueles que são excluídos por causa do racismo, do sexismo, do machismo ou de outra forma de discriminação. Então, essas políticas são focadas pra atingir as especificidades daquelas pessoas que são vítimas da sociedade. Essa inclusão tem como consequência a redução das desigualdades. Porque a retórica de conscientização não muda, tem que ser acompanhada por um projeto de inclusão, que é esse projeto que nós chamamos de políticas afirmativas, que passa, por exemplo, pela reserva de vagas na educação e reserva de vaga em outro setor da sociedade onde os negros são sub representados.
Música: “A Mão da Limpeza” (Gilberto Gil)
Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza
Marcelo Abud:
A política de cotas para grupos étnicos – como negros e indígenas – e sociais é uma ação afirmativa que começa a ganhar espaço no Brasil no ano de 2001. O marco inicial para isso é a III Conferência contra Xenofobia e Discriminação, na África do Sul.
Kabengele Munanga:
A delegação brasileira, nessa Conferência, liderada pela Secretaria de Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, com uma grande representação dos movimentos sociais, principalmente negros e negras, quando volta para o Brasil assume oficialmente o racismo e, como assinou a declaração de Durban, começou a trabalhar sobre as questões de cota. Inclusive, na declaração de Durban – tenho aqui documentos nas minhas bibliotecas -, dizendo que o Brasil ia adotar a cota para a população negra, povos indígenas e outras minorias.
Marcelo Abud:
No Brasil, a Lei das Cotas (nº 12.711) foi aprovada em agosto de 2012, como política pública de ação afirmativa na Educação Superior. Essa medida determina que as Universidades, Institutos e Centros Federais reservem 50% das suas vagas para estudantes de escola pública e reserva um percentual a estudantes negros e indígenas. Mesmo antes da lei, em 2010, 83 instituições de ensino superior já adotavam cotas. Munanga avalia os avanços obtidos neste período.
Kabengele Munanga:
A consciência racial aumentou. Graças à entrada desses jovens negros na universidade pública, eles aprendem a conviver com as diferenças. Os brancos descobrem seus compatriotas negros, com quem dialogam. Os negros, também, descobrem seus compatriotas brancos, com quem não conviviam no mesmo espaço, em termos de formação. Isso é muito positivo. Além do mais, com essa entrada (de) negros na universidade, alguns já têm acesso aos cargos de professor e pesquisador na universidade, onde ele renova o conhecimento sobre negros, com temas que os brancos não tratavam; com sua experiência de vida – o que Conceição Evaristo chama de “escrevivências” – que traz outro conhecimento, outro olhar, onde ele mesmo se torna sujeito de discursos, não como objeto, como antes. Então, os ganhos são visíveis, são importantes, mas isso não se realiza simplesmente em 10 anos.
Música: “Pretos ganhando dinheiro incomoda demais” (Criolo / Tropkillaz)
… o x da questão é que
Pretos ganhando dinheiro incomoda demais
Sociedade que só respeita o que o bolso traz
Querem me ver rastejar, ver meu povo se humilhar
Sou preto do gueto, mantenho o respeito
Favela em primeiro lugar
Kabengele Munanga:
A diferença, em matéria de educação, entre branco e negro nos Estados Unidos era de 50%, agora essa diferença está reduzida a 10%, isso quase em 50 anos de políticas afirmativas nos Estados Unidos. Porque pra você mudar as mentalidades, as cabeças, as crenças, as paixões – tem o nosso inconsciente coletivo que a consciência não controla… Então, é um longo processo.
Tem que ter vários anos até a população brasileira que o abismo se reduziu em termos de educação entre branco e negro. E alguns estão querendo acabar com isso. Estas cotas estão sendo ameaçadas politicamente, porque passa pelas leis do país, passa pelo congresso. O desafio agora é convencer essas pessoas que estão no poder que as políticas de cotas são importantes para transformação do negro na sociedade brasileira; que eles não podem destruir as políticas de cotas dizendo que tudo é problema da sociedade; vamos ter simplesmente vagas sociais, deixando de lado negros e indígenas, porque isso não vai resolver o problema. Então, é por isso que nós continuamos a defender as cotas ditas raciais.
Música: “Cota não é esmola” (Bia Ferreira), com Bia Ferreira e Doralyce
Experimenta nascer preto, pobre na comunidade
Cê vai ver como são diferentes as oportunidades
Kabengele Munanga:
Cota social é uma negação do racismo, como se os negros, os povos indígenas, não tivessem sofrido discriminação racial na sociedade – que a situação dele tem a ver apenas com classe social. Mesmo aquele que passou pela universidade, vai encontrar algumas portas fechadas na sociedade, por causa da geografia do seu corpo.
Música: “Cota não é esmola” (Bia Ferreira), com Bia Ferreira e Doralyce
Chega na escola, outro portão se fecha
Você demorou, não vai entrar na aula de história
Espera, senta aí, já já da uma hora
Espera mais um pouco e entra na segunda aula
E vê se não se atrasa de novo, a diretora fala
Kabengele Munanga:
A taxa de abandono e de evasão dos estudantes negros em escolas públicas é maior (do que) dos estudantes brancos. Você pegar vagas ditas de cotas sociais, a diferença, o abismo vai se manter. Os negros não vão entrar de uma maneira representativa. É como um milionário: alguns filhos se tornaram milionários como ele, outros ficaram pobres. Se ele quer reduzir a diferença entre seus filhos, na herança, se ele dá igualmente, distribuindo igualmente a riqueza dele, a diferença entre seus filhos vai se manter.
Então, a pressão social tem que continuar e cada um, em sua posição, naquilo que ele pode fazer, dar a sua contribuição. Claro, a maior força é a força coletiva, mas individualmente podemos também contribuir, porque você conscientiza o outro – a união faz a força -, você não fica indiferente, você se posiciona, você apoia. Então, cada um tem sua responsabilidade. O pior é ficar indiferente: ‘eu não tenho nada a ver com isso, eu não sou negro’. Isso é o pior.
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
Ações afirmativas, como as cotas em universidades, enfrentam o racismo da nossa sociedade. É por meio desta e de outras atitudes que se promove a valorização da identidade de grupos étnico-raciais em desvantagem socioeconômica.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.