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No estado de São Paulo, mais da metade dos 250 professores que atuam em escolas indígenas concluíram apenas o ensino médio. Os dados são do grupo de trabalho “Por uma licenciatura indígena no estado de São Paulo”, que, desde junho de 2018, reúne educadores e lideranças indígenas, em parceria com docentes da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), para a criação de uma licenciatura intercultural.

A iniciativa tem como objetivo central suprir a falta de formação exclusiva para docentes que atuam em escolas indígenas paulistas, possibilitando que os professores aprendam conceitos que valorizam a memória, a história e a cultura dos mais diversos povos e etnias existentes.

Para Cristine Takuá, saberes indígenas podem contribuir com toda a universidade (crédito: Alba Rodriguez)

 

A exemplo do que já acontece, há cerca de duas décadas, em regiões como Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Amapá, Amazonas, Pará e Santa Catarina, em novembro de 2019, o projeto para a implementação de  uma licenciatura indígena no estado de São Paulo foi apresentado na sede do Ministério Público Federal, na capital paulista. Atualmente, há cerca de 2,3 mil alunos em 44 escolas públicas indígenas no estado.

A professora indígena e também coordenadora do grupo de trabalho, Cristine Takuá, é a favor de que tais ações pedagógicas sejam ampliadas. “Uma licenciatura intercultural pode trazer avanços e vantagens a uma comunidade mais diversa. Os professores indígenas também conseguem aprender e ter uma troca rica na convivência com estudantes não indígenas, no sentido de conhecer mesmo como é o mundo na cidade”, afirma.

Nesse aspecto, se por um lado as universidades ganhariam com os saberes dos povos nativos, por outro, a proposta faria o ensino superior chegar a um número considerável de professores indígenas. A entrevistada ainda lembra que a educação deve ser para todos, conforme rege a Carta Magna.

“Licenciatura indígena dialoga com os saberes tradicionais dentro da escola e fortalece ainda mais a cultura”, defende Takuá (crédito: Alba Rodriguez)

 

“Esses educadores não têm um curso superior pra dar aula, eles têm uma contratação precária. A necessidade de ter uma licenciatura indígena é a possibilidade de fornecer uma formação para que eles possam aprimorar sua prática de ensino, uma vez que já atuam na área. Essa é uma demanda deles mesmos”, lembra a professora de antropologia da Unicamp, Joana Cabral de Oliveira, também ouvida pela reportagem.

Ela afirma ainda que os povos indígenas devem acessar uma escola diferenciada, com particularidades culturais e respeito aos seus modos de ser. “Para isso, eles precisam de uma escola que não opere de forma idêntica à que os brasileiros não indígenas têm. Eles precisam, então, ter garantido esse direito de respeito às especificidades culturais e de existência.”

No áudio, é possível ouvir outras vivências de Takuá e opiniões de Cabral acerca do tema. 

Transcrição do áudio:

Música instrumental “Xe’ko Xondaro” (Mbya Guarani) fica de fundo

Cristine Takuá:
Lutar por uma licenciatura intercultural, hoje, é lutar também para que os nossos territórios sejam respeitados e que a gente consiga, através das escolas, fortalecer, sustentavelmente, as nossas florestas, os nossos pajés, as nossas medicinas.

Joana Cabral: Essas teorias indígenas são super importantes para, justamente, a produção disso que nós entendemos como biodiversidade, como conservação, que eles entendem em “outra chave”, justamente porque eles não estão tratando isso como recurso, como uma natureza que é passiva, que pode ser usada de qualquer forma.

Vinheta “Instituto Claro – Educação”

Marcelo Abud:
No estado de São Paulo, mais da metade dos professores que atuam em escolas indígenas concluíram apenas o ensino médio. Para mudar esta realidade, o grupo de trabalho “Por uma licenciatura indígena no estado de São Paulo” reúne lideranças indígenas e docentes da Universidade Federal de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas.

Neste podcast, o Instituto Claro conversa com a professora de antropologia da Unicamp, Joana Cabral de Oliveira, e com a coordenadora do GT, a filósofa e professora indígena, Cristine Takuá.

Cristine Takuá:
A gente tem uma realidade, hoje, de mais de 200 professores sem formação nenhuma, só com o ensino médio. Embora alguns professores chegaram a fazer algum curso a distância, alguns cursos por conta própria, mas esses cursos feitos, tanto a distância ou presencial, em algumas universidades próximas às aldeias, não contemplam essa formação específica e diferenciada. Então, são vários professores atuando, mas sem essas ferramentas específicas pra lidar com a educação escolar indígena, que é um grande problema que a gente tem hoje.

Joana Cabral:
E esses professores, eles não têm uma formação superior pra dar aula, eles têm uma contratação precária. Eles atuam nessas comunidades e a necessidade de ter uma licenciatura indígena é a possibilidade de fornecer uma formação para que eles possam aprimorar uma prática de ensino na qual eles já vêm atuando. E essa é uma demanda dos próprios professores, um direito que eles têm garantido pela Constituição brasileira.

Música: “Po Hamék – Bate palma, bate o pé” (Krenak)

Joana Cabral:
É um direito das populações indígenas terem uma escola diferenciada. O que que é uma escola diferenciada? É uma escola que possibilite um diálogo entre diferentes formas de conhecimento; que eles tenham especificidades culturais e os modos deles de existência, de cada etnia, respeitados. Então, para isso, eles precisam de uma escola que não é uma escola que opere de forma idêntica à escola que os brasileiros não indígenas têm, eles precisam então ter garantido esse direito de respeito às especificidades culturais e de existência.

Cristine Takuá:
Aqui no Estado de São Paulo, a gente tem cinco povos indígenas. O povo guarani, o povo krenak… mas o povo guarani, que é o maior povo indígena do estado, vem de uma luta de cinco séculos. A gente tem hoje a escola como espaço de resistência e luta. Então, ter uma boa formação, principalmente na parte cultural, pra gente é um ponto muito importante.

Música “Canto da formiga”: Pénkrig fi Tynh Kãme (Kaingang)
Tradução:
Eu fico feliz
Quando como as migalhas
do socado da mulher
Eu fico feliz

Marcelo Abud:
A professora indígena aponta que, na aldeia em que vive, assim como em todo o estado de São Paulo, poucos indígenas têm formação universitária.

Cristine Takuá:
Na minha comunidade, tem poucas pessoas formadas, tem cinco pessoas que fizeram o primeiro curso de licenciatura que teve pela USP, e eu, que fiz esse curso de filosofia, na Unesp de Marília. Tem mais um rapaz que fez um curso de cinema pela ECA, mas por conta própria também. Vários alunos meus passaram na federal de São Carlos, por exemplo, que tem um programa de cotas, de apoio ao acesso a estudantes indígenas, mas em cursos regulares, junto com vários não indígenas. Só que todos esses meus alunos, acho que seis alunos que passaram em São Carlos, todos desistiram e acabaram voltando para as aldeias, porque viver na cidade é muito difícil em meio aos preconceitos.

Joana Cabral:
Essas pessoas, elas não vão aprender sobre a sua própria cultura, sobre os seus próprios conhecimentos dentro de uma universidade dos brancos. A gente não tem mestres indígenas dando aulas, que seria algo que poderia ser fantástico, mas eu acho que a ideia de mistura não me parece exatamente uma boa forma da gente falar isso, porque a ideia não é produzir um conhecimento único, que misture o conhecimento tradicional com o conhecimento científico, mas é justamente fortalecer os diversos tipos de conhecimento e as formas de transmissão desses conhecimentos, das regras que cada povo, que cada etnia possui, para a circulação desses conhecimentos, que acontecem fora dos muros da escola, fora dos muros da universidade.

Marcelo Abud:
Professora de ensino médio, Cristine Takuá percebe que os alunos dela têm anseios diferentes daqueles que costumam nortear os não indígenas.

Cristine Takuá:
A gente não pode ter um modelo de escola que priorize passar no vestibular como eu vejo que é a maioria das escolas não indígenas, aquela disputa de querer passar no Enem, de querer tirar uma boa nota para entrar no vestibular. Já a escola indígena, os nossos alunos, eles também têm a necessidade de dialogar com a cultura. Então se esses alunos têm um professor formado, com as ferramentas necessárias pra conseguir dialogar com os saberes tradicionais dentro da escola, esse aluno vai se formar com uma aptidão a conseguir fortalecer ainda mais a cultura.

Marcelo Abud:
Para Joana Cabral, a universidade também ganha ao ter contato com os saberes indígenas.

Joana Cabral:
Essa necessidade de que a universidade reconheça que existem outras formas de conhecimento, fora desse lugar que a gente entende como “o lugar do saber”, que é a universidade, que é onde a gente produz a ciência –  é reconhecido que as terras indígenas, que os povos indígenas, eles têm mantido a biodiversidade e são, na verdade, produtores de biodiversidades. Você tem, hoje, uma série de teorias, dentro da arqueologia, dentro da ecologia que demonstram que as populações indígenas elas não só são verdadeiras – até por imagens de satélites, por exemplo, coincidem com manchas verdes onde a floresta está de pé –, mas a atuação desses povos aumentam a biodiversidade, devido às suas práticas de vida, suas práticas de conhecimento.

Música: “Ñande mbaraete’i katu” –  Vamos nos fortalecer (Guarani Mbyá)
Tradução:
Vamos, sim, nos fortalecer
Todos juntos.
Vamos, sim, cantar nossos cantos
E ser felizes

Marcelo Abud:
Desde o final dos anos 1990, há iniciativas de universidades públicas e particulares que oferecem a licenciatura indígena, em estados como Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Amapá, Amazonas, Pará e Santa Catarina. O contato com essas experiências foi importante para a criação do projeto pedagógico que está sendo proposto para a licenciatura indígena em São Paulo.

Cristine Takuá:
A gente teve a visita de alguns professores indígenas que, hoje, lecionam nas licenciaturas dos seus estados, como foi o caso do professor Eliel Benites, que hoje é professor na federal da Grande Dourados, ele é guarani-kaiowá; também tivemos Nei Xakriaba, que é da federal de Minas Gerais e a Josileia Kaingang, que é de Santa Catarina. Eu percebi que o trabalho desses professores, quando eles foram, eles fizeram licenciatura intercultural, eles conseguiram fortalecer elementos da cultura deles que estavam já quase esquecidos e foi através da pesquisa e da sistematização desse conhecimento que eles conseguiram fortalecer a cerâmica, fortalecer a produção de material didático na língua indígena, que hoje a gente praticamente não tem. Quase todos os materiais que a gente recebe hoje é do MEC, mas tudo em português, numa visão totalmente eurocêntrica.

Música: “Vãnh géhn tu vãje tó” – Canto de guerra Kaingang
Tradução:
O Kaingang é filho da mata
A gente se sente feliz lutando
Juntos vamos dançar

Cristine Takuá:
Quando eu estudei, eu passei por muitas dificuldades, de perceber o quanto a universidade ainda tem uma certa ignorância, um certo preconceito com relação aos indígenas de modo geral. Então, eu acho que quanto mais indígenas na universidade, mais a possibilidade de se quebrar esses preconceitos e de também se intercambiar esses saberes. Porque o estudante indígena cursando matemática, ou cursando filosofia, ou qualquer outra área, ou na própria licenciatura intercultural, ele vai estar presente na universidade trazendo esses elementos da cultura, que os não indígenas desconhecem.

Um professor formado em história, ele desconhece a história real dos povos indígenas, assim como dos povos africanos. Então, eu acredito que quanto mais presença indígena na universidade, mais a gente consegue acabar com toda esta violência que existe contra os povos indígenas.

E, por outro lado, eu também acho que os professores indígenas também conseguem aprender e ter uma troca rica na convivência com estudantes não indígenas, no sentido de conhecer mesmo como que é o mundo na cidade, como que é, tipo, bibliotecas. Nas aldeias, a gente não tem bibliotecas boas nas nossas escolas. Então, estudando numa universidade, convivendo com pessoas não indígenas e acessando esses outros saberes, como, por exemplo, a biblioteca, eu acho que enriquece bastante a troca e o respeito também mútuo entre indígenas e não indígenas.

Marcelo Abud:
Com o projeto político pedagógico proposto para o estado de São Paulo, mais da metade dos professores indígenas vão poder ter acesso ao ensino superior. A universidade também terá ganhos ao enriquecer seus conhecimentos com os saberes das diferentes etnias.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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