As eleições presidenciais de 2022 evidenciaram um quadro polarizado no Brasil, que resultou em manifestações de xenofobia contra os moradores da região Nordeste na mídia e nas redes sociais. “A xenofobia é quando uma cultura ou grupo rejeita e estranha outra do ponto de vista das identidades culturais. No caso das eleições, apesar de se tratar do mesmo país, é possível aplicar o termo xenofobia para as manifestações de preconceito regional porque existe uma desvalorização da cultura de uma região por outra. Além de uma tentativa de hierarquização, como se houvesse uma cultura superior e outra inferior”, resume o doutor em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) Marlon Marcos Vieira Passos.

Os estereótipos difundidos na ocasião tratavam o Nordeste como uma região “de coronelismo”, “de gente preguiçosa” e que “merece seca” e “não sabe votar”. Além de demostrar desconhecimento sobre a cultura e a potencialidade da região, todos têm origens anteriores às eleições em si. “Há racismo, preconceito de classe e elementos que rementem a geografia natural da região que se articulam entre si”, introduz Passos.

O mito do “combate à seca”

O estereótipo do semiárido brasileiro como uma região de seca – logo inóspita, geradora de miséria, de migração e de assistencialismo social – é um dos elementos presentes nas manifestações de xenofobia. A origem remete ao Brasil Império e forte estiagem na região em 1877. Esta culminou em políticas que tratavam a seca não como um elemento natural de um bioma, mas como um mal a ser combatido.

Passos explica que, no século seguinte, esse pensamento consolidou a chamada “Indústria da Seca”, que priorizou carros-pipas e a construção de barragens e açudes. Iniciativas que não mitigavam o problema e ainda concentraram a água nas mãos da elite da região. Marginalizada e sem acesso à água e terras para produzir alimentos, a população pobre se viu dependente de trabalhos precários, assistencialismo e da migração para as regiões Sul e Sudeste, onde foram tratados como subalternos e invasores.

“Esse imaginário do Nordeste como região de seca, fome, retirantes, coronelismo e messianismo foi amplamente difundido pela imprensa do Sul do país. Esses elementos estão vivos até hoje”, lembra o doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Ufrrj) Valdênio Freitas Meneses. Nessa perspectiva, ele destaca o livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, de 1902, quando ele foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo para cobrir a Guerra de Canudos no interior da Bahia.

Segundo Meneses, a ideia do Nordeste como uma região de coronéis que controlam a população – algo visto historicamente em todo o Brasil – ainda é presente no imaginário popular nos dias atuais.“Se a milícia do Rio de Janeiro tivesse ocorrido em um estado da região Nordeste certamente teria recebido o título de ‘novo coronelismo’”, opina.

Ódio de classe

Sem políticas públicas de convivência com a seca e que democratizassem o acesso à água e alimentos, levas de retirantes do Nordeste migraram principalmente para São Paulo e Rio de Janeiro durante o século XX. “Vieram para trabalhar em serviços domésticos e empregos que antes eram renegados aos escravos. Isso estimulou a ideia de serem vistos como inferiores e subalternos, intensificando tensões que já existem no mundo do trabalho”, explica Meneses.

“Além do sotaque, a vestimenta e corpo são elementos que também expressam classe social e se tornaram formas de identificação dessa população, que passou a sofrer discriminação”, conta Meneses. “Nas eleições, o que vimos no discurso xenófobo foi uma vontade dos sudestinos de lançar um olhar colonizador para os nordestinos, como se fossem um povo inferior, atrasado e cuja função é servir”, analisa Passos.

Por São Paulo ter recebido fortes migrações da Bahia, todos os nordestinos da região passaram a ser taxados pejorativamente como “baianos”. No Rio de Janeiro, passaram a ser chamados de “paraíbas”. “O estereótipo reduz toda a diversidade cultural e regional a uma coisa só”, lembra Passos.

Outro aspecto de questões de classe foi o advento do Sudeste como Parque Industrial enquanto a agricultura do Nordeste se viu com menos protagonismo e investimento. “Ficamos presos a um tipo de colonialismo agrário, voltado à agro exportação.Tornamos-nos mão de obra precarizada e desassistida pela União, elementos que também ajudaram a traçar um imaginário que hierarquiza o Sudeste como superior”, pontua o antropólogo.

Por fim, o racismo

Para Passos, o principal elemento articulador da xenofobia contra o nordestino é o racismo estrutural presente no Brasil. “Nos séculos XIX e XX, um projeto político do governo federal de embranquecimento da população trouxe imigrantes, principalmente de origem italiana e alemã, para trabalharem nas lavouras de café do Sudeste e Sul do país”, lembra o antropólogo.

“Já o Nordeste e o sertanejo são formados majoritariamente pela população negra e mestiça entre negro e indígenas. Nesse mesmo final do século XIX, a mestiçagem é tratada pela medicina e sociologia como uma raça impura, degenerada, atrasada e indolente”, explica. “Criou-se, assim, processos hierárquicos, onde o branco europeu que coloniza o Sudeste é visto como superior a uma cultura de origem africana e dos povos tradicionais”, associa.

Mudando o panorama

Mas como se combate a xenofobia contra os nordestinos? Para Meneses, o primeiro aspecto é atualizar o imaginário sobre o Nordeste, que também é polo de desenvolvimento científico, tecnológico, comercial e cultural. “As políticas de combate à pobreza na região desde 1988 ajudaram a mudar o cenário, porque todo estereótipo tem um fundo material. Porém, é preciso reforçar na educação que o Nordeste não é dos cangaceiros e coronéis. E mesmo aquele nordeste antigo, naquele contexto histórico, era considerado moderno”, lembra o cientista social.

“As desigualdades vistas nas áreas urbanas e rurais nas cidades do Nordeste estão igualmente presentes em outras regiões do país”, desmistifica. Outro aspecto são as políticas de convivência do semiárido, iniciadas desde a década de 1990 e que explicam o bioma para a população, lembrando que estiagem é apenas um dos elementos dele.

Contra as políticas de “combate à seca”, merecem destaque os programas Cisternas e Cisternas nas escolas, que levam esse conhecimento para o campo da educação.

“A linguagem artística, por meio da música e do cinema, é outra possibilidade, assim como recontar a história brasileira pela perspectiva decolonial (que traz a perspectiva e o protagonismo de populações que foram marginalizadas e excluídas do discurso histórico oficial)”, opina Passos.“Isso ajuda a quebrar a hierarquia de raças e culturas e a imprimir a riqueza que somos como nação”, finaliza.

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