“Colocarei minha máscara porque esse daí tem a cara do coronavírus”, ouviu o cineasta e mestrando da Universidade Federal Fluminense (UFF) Hugo Katsuo, ao caminhar em uma praia carioca. “Discriminação que reflete uma associação intensa da covid-19 à China por governantes brasileiros”, analisa. A situação, porém, também manifesta estereótipos mais antigos, que são usados como matéria prima para o racismo atual. “Na imigração japonesa, estes eram considerados um povo que não se misturava, comparados ao elemento químico enxofre. Isso contribui para que os descendentes ainda não sejam considerados brasileiros” pontua.
Há ainda o mito das três raças, que apresenta o Brasil como constituído por brancos, negros e indígenas, excluindo as pessoas com aparência asiática. “Isso provoca apagamento e exclusão simbólica”, observa Katsuo. Para completar, culturas distintas – como coreana, chinesa e japonesa – são, popularmente, reduzidas a uma coisa só. Isso é visto na frase racista ‘japonês é tudo igual’ ou quando qualquer asiático é chamado de “japa”. “Estereótipo que não é somente estético, mas moral. Se o vírus veio da Ásia, logo todo ‘asiático’ pode me infectar”, exemplifica o cineasta.
Além disso, o próprio contexto da pandemia resgata o termo racista “perigo amarelo”, que associava a imigração asiática à destruição do ocidente no século XIX e se intensificou com a Segunda Guerra Mundial. “Houve campos de concentração brasileiros para essa população, vista como risco à nação”, lembra a doutoranda em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP) Lais Miwa Higa.
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Pano de fundo
Estereotipar é pegar uma característica de um grupo – que não é propriamente uma mentira – e usá-la para representar todos os seus integrantes. “Na prática, reduz descendentes de culturas asiáticas amarelas a uma mesma coisa, negando que haja pessoas diversas. Isso desumaniza”, explica Higa. Essa simplificação passa a ser entendida como uma verdade. “Assim, é utilizada como instrumento para o racismo e a discriminação”, acrescenta.
No Brasil, tal racismo se manifestará principalmente por xenofobia. “Descendentes ainda vistos como estrangeiros em seu país”, destaca a antropóloga. Outra forma é o “racismo recreativo” – “piadas” como “pastel de flango”, “abre o olho, japonês” e outras situações cotidianas. Estas são denunciadas pelo coletivo de humor Yo Ban Boo em vídeo.
“Há ainda o apagamento da masculinidade do homem asiático: visto como detentor de órgão sexual pequeno e não passível de ser desejado. Já a mulher é hipersexualizada, o que remete às gueixas, submissão feminina e ‘mulheres de conforto’– civis forçadas à prostituição por militares japoneses na Segunda Guerra Mundial”, contextualiza Katsuo. “Combater estes estereótipos é fundamental contra o racismo”, alerta Higa.
Estereotipo positivo?
Mas o asiático amarelo também é retratado como trabalhador dócil, submisso, inteligente, educado, sério e honesto. “É a chamada ‘minoria modelo’, fazendo-se presente em frases como: ‘mate um japonês para entrar na universidade’”, traduz a filósofa mestre em Política, Conhecimento e Sociedade pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Maria Morita.
A diplomata Mayra Saito conta que, já adulta, sentia-se valorizada em ambientes profissionais por sua ascendência. “Certa vez, fui parada e bem tratada pela polícia enquanto levando um carro ainda não emplacado durante à madruga. Isso aconteceria se fosse negra?”, questiona.
O estereótipo de minoria modelo, porém, não é positivo “Para ser modelo, necessita ser comparado a outros grupos. Logo, legitima outros racismos, principalmente contra negros. Como se o branco dissesse: ‘essa é a minoria de que gosto’”, salienta a filósofa.“Diz aos negros: ‘se asiáticos conseguiram, por que vocês não? Uma meritocracia que desconsidera a herança da escravidão”, enfatiza Katsuo.
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Identidade impactada
Como uma via de mão dupla, estereótipos também influenciam como o próprio descendente asiático amarelo se enxerga. “Ele se questiona: eu deveria ser isso, mas não sou. Então, o que devo ser?”, aponta Higa. Por isso, os mesmos também são reforçados pela própria comunidade. “Bebia em um bar cujo dono era nipônico que me disse: vai para casa que nós não fazemos isso”, relata Saito.
Há, ainda, o reforço de estereótipos na mídia e personagens asiáticas sendo interpretadas por pessoas brancas em novelas e programas humorísticos, no chamado “yellow face”. Essa falta de representatividade nos meios de comunicação em massa atrapalha. “Se não conheço asiáticos, acreditarei nos estereótipos vistos na televisão e posso ser racista”, adverte Katsuo.
Novos rumos
A popularização do cinema sul coreano e do K-Pop, estilo musical do mesmo país, trouxe novos asiáticos para as rádios, televisões e redes sociais. “O premiado ‘Parasita’, por exemplo, não mostrou uma cultura fechada, mas que todo país capitalista tem desigualdades. Isso gerou identificação entre brasileiros”, reflete Higa.
“O K-Pop traz asiáticos passíveis de serem ídolos desejados. Em contrapartida, não refletiu em mais bandas com descendentes asiáticos no mercado fonográfico brasileiro e me questiono se não se apoia no mesmo estereótipo de homem ‘pouco viril’”, reflete Katsuo. Mudar esse panorama exige discussões internas. “Precisamos rever o mito da minoria modelo e nossas masculinidades dentro da comunidade”, defende Morita. Katsuo acredita que mais diversidade na mídia faz diferença, com descendentes de asiáticos se autorepresentando e falando por si: “Naturalizar exige mostrar diversidade no audiovisual: que podemos ser bons, maus e estar em qualquer profissão”.
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