A falta de números atualizados sobre os ciganos brasileiros impede seu acesso a direitos como educação e saúde. É o que afirma o presidente nacional do Instituto Cigano Brasil (ICB), Rogério Ribeiro. “É um círculo vicioso. Sem dados, não temos a criação de políticas públicas que entendam nossas especificidades e ajudem na inclusão. E sem estarmos presentes na escola ou posto de saúde, continuamos invisíveis”, lamenta ele.

O último levantamento oficial dessa população foi no Censo de 2010. Na época, foram registrados 800 mil ciganos no país. Para Ribeiro, hoje, esse número deve ultrapassar dois milhões.

Por não possuírem comprovante de residência ou documentos, ciganos nômades podem ter o acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) negado. “Outra particularidade é que mulheres não se sentem à vontade de se consultarem com um ginecologista homem, por exemplo, impedindo a prevenção de doenças”, pontua.

Segundo o presidente do ICB, falta de números atualizados sobre os ciganos brasileiros impede inclusão social (crédito: arquivo pessoal/Rogério Ribeiro)

De acordo com Ribeiro, o mapeamento ajudaria a entender a distribuição geográfica e a criar políticas nas áreas mais povoadas. “Um município poderia capacitar profissionais da saúde ou mesmo oferecer uma educação escolar intercultural, como a educação indígena”, compara ele, que destaca um alto índice de analfabetismo entre os ciganos.

Conhecer para incluir

Determinados estados possuem populações ciganas com características e necessidades diferentes. Enquanto o Ceará apresenta comunidades fixas, o Rio Grande do Sul é marcado pela cultura nômade ou “de barraca”.

“Isso exige a oferta de locais seguros para armar as tendas e acesso à energia elétrica e saneamento”, lista o diretor do ICB do Rio Grande do Sul, Silveira Galvão.

“Acampamentos precisam estar próximos às cidades para permitir a venda de artesanatos e o sustento”, completa o presidente da União dos Ciganos do Brasil, Marcelo Vacite.

Materiais informativos do governo federal também desconsideram especificidades. Foi o caso das cartilhas de prevenção ao novo coronavírus (covid-19) destinada aos “Povos Tradicionais”, denominação que agrega 29 populações, entre indígenas, quilombolas e ciganos. “Foi necessário elaboramos uma publicação de prevenção à doença por nossa conta, no nosso idioma, o chibi”, informa Ribeiro.

Atualmente, tramita no Congresso o Estatuto do Cigano (PLS 248/2015), que abrange orientações para educação, saúde, ações antidiscriminatórias, crédito, valorização cultural, acesso a moradia e emprego, respeitando as particularidades dessa população.

Até uma possível aprovação, a população se apoia em poucas portarias do Ministério da Saúde, como as 4.384/2018 e 035/2020. “Porém, os municípios não implementam essas diretrizes. Tentamos ligar nas secretarias de Saúde e dialogar”, revela Ribeiro.

História contra preconceitos

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o termo cigano é usado para se referir a grupos heterogêneos, mas unidos por raízes históricas e linguísticas comuns. Sua origem data do ano 1000, quando ocorreu uma migração de indianos à Europa por motivos desconhecidos.

Roupas coloridas, danças e jogo de cartas fazem parte da cultura cigana (crédito: arquivo pessoal/Ramona Torres)

“Cigano é aquele que nasceu de ventre ou mãe cigana”, diferencia a cartomante e fundadora da Sociedade Rajor, Ramona Torres.

No Brasil, existem oficialmente três etnias: Calon (desde 1574), Rom e Sinti (chegadas no século 19).

“Fazemos parte da miscigenação que é o país. Fomos os primeiros oficiais de justiça, meirinhos e artistas da corte”, contextualiza Vacite.

A trajetória, porém, foi marcada por preconceito. “Os dicionários, por exemplos, traziam ‘boêmio’ e ‘trapaceiro’ como sinônimos de cigano, o que reflete até hoje”, pontua ele.

Torres já sofreu inúmeras discriminações. “Ser seguida no supermercado, pedida para me retirar de uma padaria, questionada se teria dinheiro para pagar um produto e chamada de ladra quando entrava na minha casa”, lista.

Já Ribeiro foi rejeitado pelos amigos de escola. “Se sumia algo na classe, desconfiavam de mim”, conta.

Acampamentos são frequentemente alvos de batidas policiais. “A mídia reforça o estereótipo. Quando um cigano comete um delito, isso é destacado logo na manchete. Não acontece com o branco”, compara Galvão.

Por conta do preconceito, muitos preferem esconder sua origem. “Por segurança e sobrevivência financeira, não contava na faculdade ou empregos”, lembra Ribeiro, que é comunicador social.

Contra essa violência, Vacite aposta na educação. “Daí a necessidade do esclarecimento da nossa participação na história.”

Apropriação cultural

A cultura do povo inclui quiromancia, o jogo de cartas, as roupas coloridas e as danças. Castro Alves, Cecília Meireles, Juscelino Kubitschek e Elvis Presley são alguns nomes conhecidos que possuem descendência cigana.

“O que muita gente não sabe é que pertencer a essa etnia não está atrelado a uma religião. A pessoa é livre para escolher seu credo, apesar da maioria ser católica e devota de Santa Sara Kali”, ensina Ribeiro.

A popularização da comunidade em filmes, novelas e livros, porém, criou um fenômeno recente: uma legião de não-ciganos que se identificam com a cultura do povo. “Costumo chamá-los de ‘ciganos do coração’”, diz Torres.

Contudo, o uso da cultura por pessoas de fora da etnia e para fins comerciais esbarra na questão da apropriação cultural.

“Há muitas festas temáticas ou pessoas que inclusive usam da nossa bandeira. Mas elas não direcionam ou convertem o dinheiro que lucram para o povo de verdade, de sangue, que está em situação de vulnerabilidade”, alerta Ribeiro.

“Se por um lado, isso aproxima nossa cultura das pessoas de fora, também pode reforçar que somos uma ‘fantasia’, logo, não existimos de verdade”, analisa Torres.

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Crédito das imagens principais: arquivo pessoal/Ramona Torres

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