Uma tecnologia desenvolvida por um pedreiro foi responsável por mudar a realidade do semiárido brasileiro. É a cisterna de placas pré-moldadas, um reservatório para armazenamento de água implantado em 1955, na Bahia, por Manoel Apolônio de Carvalho, o Nel.

“A cisterna para consumo tem 16 mil litros, é semienterrada e armazena água das chuvas captada do escoamento dos telhados das casas. Essa tecnologia para a agricultura tem 52 mil litros, é enterrada e armazena água das chuvas captada do solo, canalizando as enxurradas”, diferencia o ex-coordenador-geral de acesso à água no Ministério do Desenvolvimento Social Igor da Costa Arsky.

A invenção pautou o Programa Cisternas, criado em 2003 pelo governo federal para evitar a sede e a destruição das lavouras nas regiões mais secas do Nordeste. Segundo a Articulação do Semiárido (ASA) – entidade que atua na implantação e monitoramento do programa – desde então foram construídas 1,2 milhão de cisternas de consumo; 200 mil tecnologias para produção de alimentos e mais de 7 mil cisternas escolares.

A iniciativa foi classificada, em 2017, como a segunda melhor política do mundo pela Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD).“O programa valoriza o conhecimento da região, promove a troca de experiências entre os agricultores e compartilha conhecimentos sobre como estocar água para os momentos de seca, ajudando na alimentação, a manutenção dos animais, as sementes e as lavouras”, sintetiza o coordenador da ASA no Ceará, Marcos Jacinto. “Também envolve a população na sua construção e capacita sobre gestão da água, estimulando o protagonismo social”, acrescenta.

Resgate de cidadania

Pesquisador dos impactos do Programa Cisternas no Nordeste, Arsky destaca como benefício o resgate da dignidade. “Essa poupança de água adia ou evita as situações-limite que as famílias do semiárido viviam, resultando em qualidade de vida e autoestima.” Jacinto enfatiza a autonomia. “Há água por oito meses, períodos de uma estiagem normal. As famílias não precisam gastar tempo procurando água barrenta. Isso transformou a imagem da mulher com a lata d’água na cabeça durante a seca.”

O acesso à água também influencia nas relações políticas locais. “Elas podem depender menos ou dispensar o carro-pipa, evitando as relações clientelistas nas eleições”, conta Arsky.“E com dignidade, autonomia e mais tempo, há disponibilidade para participarem das associações, reuniões e ações coletivas nas suas comunidades”, completa. Por fim, há geração de renda. “Com as lavouras preservadas, o excedente produzido nas casas pode ser vendido nas feiras locais”, afirma Jacinto.

Conviver, não combater

Mestre em Ensino e História de Ciências da Terra pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Kezia Andrade dos Santos acompanhou a implantação do programa Cisternas nas Escolas em Mucugê (BA).“A iniciativa evita que escolas sem acesso à água sejam fechadas e que estudantes tenham que viajar para estudar, prevenindo a evasão escolar”, aponta. “Há ainda capacitação das merendeiras e da comunidade escolar sobre os recursos hídricos, fortalecendo a segurança alimentar”, complementa.

Jacinto explica que os conhecimentos do programa ajudam a comunidade escolar a ressignificar sua visão da seca e do semiárido.“A seca é fenômeno climático que sempre existiu. É preciso entender os desafios e potencialidades desse espaço. Assim, substitui a narrativa de combate à seca para de como conviver com as características naturais do semiárido”. Para Andrade, isso aumenta a sensação de pertencimento do aluno. “Ele deixa de achar que vive em uma região-problema, ruim, sem vida ou desenvolvimento. Informações, por vezes, reforçadas nos livros didáticos.”

Sede é realidade

Jacinto denuncia, porém, cortes no programa desde 2017 que provocaram seu desmonte. Enquanto em 2014 foram destinados R$ 324,6 milhões (valor sem inflação atualizada), valor que possibilitou a construção de 149 mil tecnologias, em 2020 e 2021 não houve repasses por parte do governo federal.

“Foram construídas aproximadamente 8,3 mil tecnologias em 2020 e, em 2021, 4.305. No entanto, foram com recursos dos anos de 2018 e 2019”, denuncia Jacinto.“Há ainda evidências de desmonte do programa, com novas regras dos editais tentando excluir as organizações sociais que atuam nele desde o início”, aponta Jacinto.

Segundo a ASA, a universalização da água potável na região exige ainda 350 mil cisternas de consumo. “Se somarmos as cisternas e demais tecnologias para produção de alimentos, são 800 mil unidades”, calcula o coordenador.Contra o problema, a ASA criou a campanha Tenho Sede, que arrecada doações para construção de cisternas.

Outro agravante foi a piora da segurança alimentar e hídrica na região após a pandemia, segundo dados do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.“A insegurança hídrica, medida pelo fornecimento irregular ou mesmo falta de água potável, atingiu 40,2% na região Nordeste”, conta Arsky. “As famílias que tiveram acesso à água por meio do programa Cisternas têm mais alternativas para enfrentar os efeitos sociais da pandemia”, defende ele.

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