Tecnologia, ficção e ancestralidade africana. Essas são palavras-chave para começar a entender o afrofuturismo, um movimento cultural e social que abrange artes, ciências e inovações. Na cultura pop, o filme “Pantera Negra” e o álbum visual “Black is King”, da cantora Beyoncé são seus expoentes mais populares. “Existem diversos desdobramentos conceituais sobre afrofuturismo. Em comum, falam sobre as relações com a temporalidade, utopias, distopias, afrocentralidade [a África no centro], ciência e com o ciberespaço”, introduz a multiartista, pesquisadora e cientista Zaika dos Santos.
“O afrofuturismo faz um contraponto ao imaginário de opressão que acompanha o escravismo. Por meio dele, é possível imaginar outros lugares de existência. Isso é importante para crianças e adultos negros”, complementa o professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Wagner Leite Viana.
Segundo ele, o movimento não é isolado e dialoga com outras ações e produções de intelectuais negros dentro da chamada perspectiva pan-africana. A ideologia defende a união de todos os povos do continente para combater preconceitos e problemas sociais. “É simbolizada por uma Sankofa, que é uma ave se voltando para trás. Ou seja, simboliza que é inevitável pensar o futuro sem revisitar o passado”, destaca o professor. Mas nem todos os futuros imaginados em filmes e livros, claro, serão reais. “O objetivo é exercitar a capacidade de inventar futuros, olhando para como nossos antepassados resolveram problemas parecidos”, afirma.
Arte como caminho
A hipótese mais difundida é que o termo afrofuturismo tenha sido cunhado no artigo “Black to the future”, de 1993, do crítico norte-americano Mark Dery. “Na verdade, Dery pesquisava culturas online. Porém, em 1990, quem liderou a pesquisa foi a escritora e acadêmica afro-americana Alondra Nelson, mas o conceito se antecede em toda diáspora africana”, aprofunda Zaika.
O campo das artes é onde o afrofuturismo é mais conhecido, abrangendo literatura, música, cinema, moda, games, artes visuais e digitais, dentre outras manifestações. Um dos pioneiros foi o compositor de jazz e poeta Sun Ra, na década de 1960. As cantoras Grace Jones e Janelle Monáe também são expoentes.
Nas artes, um dos objetivos é “descolonizar” o olhar influenciado pela estética europeia, que coloca o belo como sinônimo de branquitude. “A partir disso, apresentar as histórias da arte africana e afrodescendente que enaltecem a afrocentralidade”, observa Zaika.
Para ilustrar, Leite cita a obra “A pequena moenda de cana-de-açúcar”, de Debret (1835), que mostra escravos negros trabalhando em um engenho. “Críticos destacam a posição dos corpos dos trabalhadores braçais nas máquinas, mas não imaginam que eram eles que também as construíam. O afrofuturismo recupera essa capacidade de invenção”, assinala.
Apagamento científico
Quando o assunto são inovações tecnológicas, o afrofuturimo alia tecnologia ancestral, social e também digital. Nesse último guarda-chuva, merecem destaque o ciberativismo e hashtivism, que usa as hashtags das redes sociais. “Exemplos foram as campanhas #blacklivesmatter, #vidasnegrasimportam e #endsars [movimento contra a brutalidade policial na Nigéria]. Elas mobilizaram o mundo no combate ao genocídio da população negra”, ressalta a cientista.
Combater o apagamento das conquistas e inovações africanas nas ciências também é outro aspecto do afrofuturismo. “Após a colonização e escravidão forçada, houve um apagamento da história africana. Com isso, o racismo científico se popularizou. Descolonizar a ciência é a atual missão global que já foi denunciada pelo cientista Cheikh Anta Diop e a cientista Lélia Gonzalez”, alerta. Para completar, o afrofuturismo também dialoga com a diversidade da África. “Afinal, estamos falando de um continente com 54 países, mais de 2.000 línguas e cinco famílias linguísticas, assim como os descendentes deste continente espalhados pelo mundo”, diz Zaika.
“Também está relacionado a outras duas contra-narrativas: African Futurism (o Pioneirismo de África pelo olhar africano) e Afropresentismo (o futuro é o ‘agora’) que são narrativas importantes, também pautadas nas artes e mídias por Neema Githere e Nnedi Okorafor”, enfatiza a pesquisadora.
Ponto de partida
É possível conhecer mais sobre o afrofuturismo no Brasil por meio dos perfis nas redes sociais dos escritores Fábio Kabral, Alê Santos e Lu Ain-Zalia. No campo das plásticas, o movimento conta com No Martins e Felipe Borges. Na música, bons exemplos são a cantora Xenia França e o pianista Jonathan Ferr.
Para aprofundar os conhecimentos sobre o tema, Zaika indica, como ponto de partida, o podcast @faleafrofuturo; os perfis da comunicadora e curadora artística Kenia Alice; Afrofuturism – Arte e Stem e Descolonizando Saberes, da professora Bárbara Carine.
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