O “cancelamento” de músicos, escritores, cientistas, atletas e de até de pratos russos se tornaram comuns em todo o mundo com a guerra entre o país e a Ucrânia. Exemplos incluem o cancelamento de um curso sobre o escritor Dostoiévski na Universidade de Milão, na Itália, e o anúncio de que a rede de hotéis Pytloun, na República Tcheca, não hospedaria mais pessoas da Rússia e da Bielorrússia. No Brasil, alguns restaurantes retiraram o estrogonofe e o drink Moscow Mule de seus cardápios, o que levou a Associação de Bares e Restaurantes de São Paulo (Abrasel) a emitir o posicionamento “Contra a guerra, não contra o povo russo”.

O professor da pós-graduação em Ciência Política e em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG) João Henrique Ribeiro Roriz lembra que tais medidas são ineficientes e fomentam a intolerância. “É uma reação emotiva e rasa, que não ajuda a compreender a complexidade da guerra e ainda confunde a atitude do governo russo atual com a cultura e as pessoas dessa nação, que não tem nada a ver com o conflito”, diz.

Docente e pesquisador do núcleo de Direitos Humanos, Cidadania e Políticas Públicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), Nei Alberto Salles Filho vê no cancelamento cultural uma forma de violência simbólica. “Ela pode ganhar volume e ser justificativa para outros ataques. É uma atitude violenta e não diferente das que levaram à própria deflagração da guerra. Vale refletir: queremos cultura de paz ou cultura de guerra?”, questiona.

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“Sempre existem vínculos entre violência simbólica e estrutural, mas é difícil apontar a causalidade entre ambas. Há casos de pequenas ações que vão se avolumando e estouram em momento de catarse coletiva, quando as pessoas se tornam irracionais”, analisa Roriz.

Comunidade sofre ataques

Preocupação com os entes queridos marcam as pessoas da comunidade russa que vivem no Brasil. A tradutora russa e brasileira naturalizada Ekaterina Trofimova, de 43 anos, é uma das milhares de pessoas que possuem família russa-ucraniana e parentes nos dois lados do conflito. “Muitos não entendem que temos famílias e culturas mistas. Tanto que a comunidade russa no Brasil se posicionou de forma a acolher pessoas de ambos os lados”, esclarece.

Além do estresse de presenciar a guerra atingindo família e amigos, russos no Brasil passaram a lidar com ataques presenciais e online. Trofimova recebeu uma mensagem de intimidação via Instagram de um desconhecido. “Minha filha de oito anos foi chamada de ‘russa safada’ na escola e meu filho adolescente ouviu coisas parecidas também”, relata.

A diretora do Instituto Russia Brasil, Valéria Fomina, de 32 anos, recebeu comentários ofensivos nas redes sociais do instituto. “Não presenciei nada na rotina porque o conflito me entristeceu e abalou emocionalmente, de modo que saio pouco de casa. Porém, há comentários em posts de brasileiros dizendo não querer russos no Brasil, falando para irmos embora ou que a Rússia é um país assassino”, compartilha. “Decidimos não excluir essas mensagens para registrar o quanto é triste o que está acontecendo”, acrescenta.

Roksana Valeeva Rosa, de 24 anos, é russa e casada com o brasileiro em processo de naturalização, Felipe Valeeva Rosa, de 34. Professores de russo do Instituto Valeeva Rosa, ambos sofreram situações de discriminações presenciais, o que levou a decisão de abandonarem o Brasil. “Os motoristas de aplicativo sempre perguntam a minha nacionalidade e uma vez, em São José dos Campos (SP), um deles enfatizou que eu devia ir embora do Brasil”, relata.

“Era noite, estava sozinha e fiquei com medo de brigar e ele me deixar na estrada. Optei por fingir que não estava entendendo. Outra situação semelhante foi no supermercado em que frequento, com uma funcionária. Tudo isso culminou em uma crise de pânico”, descreve Roksana.

Diante das abordagens, eles optam por mentir que são alemães e evitam conversar em russo entre si.“É impossível ir em qualquer lugar sem ter que explicar que não é você que está jogando uma bomba. Também não adianta dialogar nesse momento, porque há uma histeria coletiva”, descreve Felipe. “Violência gera violência e o que a gente vê é uma animosidade tão grande sendo propagada. Os ânimos precisam se acalmar antes de se tentar dialogar”, complementa Trofimov.

O jornalista Andrei Ulinkin, de 36 anos, também relata situações atípicas quando percebem que ele é russo: “Uns ficam constrangidos com essa situação, outros fazem perguntas e há aqueles que fazem uma espécie de reinvindicação para mim. Como: ‘você é russo, pertence a essa cultura, deve explicações’”. “De toda forma, são pessoas pouco informadas”, analisa. Para Fomina, muito do preconceito vem da mídia não contextualizar o histórico e os dois lados do conflito. “Assim como as produções de Hollywood, nos tempos de guerra, sempre trazem um russo como vilão. Isso ajudou a moldar o imaginário sobre o povo”, acredita.

Como ajudar?

Segundo Roriz e Filho, medidas efetivas contra a guerra são campanhas de solidariedade para os refugiados de ambos os países. “Assim como refletir sobre a insensatez de todos os conflitos e se informar”, diz Filho. “Diante de temas tão complexos, com tantas perspectivas, discursos e fake news precisamos manter uma postura ponderada, entender os diferentes contextos e optar pelo diálogo a partir das diferenças. Infelizmente, as pessoas têm optado por conhecer pouco e discordar muito”, aconselha.

Fomina relembra ainda a importância de separar a política da cultura russa: “O atual governo está no poder há duas décadas, o que é nada dentro de uma cultura milenar. A literatura de Dostoiévski, a música de Tchaikovsky, o sistema de interpretação de Stanislavski existiram e vão continuar existindo quando essa situação se resolver”.“É importante conhecer o máximo de cultura possível. Nesse sentido, quem realmente perde é o que ‘cancela’ a cultura de outro povo”, finaliza Ulinkin.

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Atualizada em 12/04/2022, às 15h17

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