Focando na inserção do jovem no mercado de trabalho pela oferta de itinerários formativos técnico e profissional, a reforma do ensino médio provocaria o oposto na rede pública, segundo especialistas. Com o corte de disciplinas básicas, 2,4 mil horas da etapa se transformaram em 1,8 mil horas de Base Nacional Comum Curricular (BNCC), agora acrescidas de 1,2 mil horas de itinerários sobre temas como empreendedorismo

Para o integrante do Observatório do Ensino Médio do Rio Grande do Sul Mateus Saraiva, a exclusão de alunos pobres do mercado ocorreria justamente porque o trabalho deixou de ser princípio do ensino médio para virar fim.“Antes ele era integrado a disciplinas que permitiam reflexões sobre o trabalho. Biologia para pensar materiais, sociologia para as relações de trabalho e etc. Agora, o foco virou o trabalho instrumental, ou seja, a ação em si”, argumenta.“O problema disso é: se antes cursar datilografia qualificava para o mercado, hoje não mais. Ou seja, trabalho instrumental é pontual e enfraquece, não garantindo empregabilidade”, acredita Saraiva.

Leia mais: Novo ensino médio: o que muda para os professores com a reforma?

O pesquisador de Trabalho e Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Evaldo Piolli avalia também que haverá perda da educação científica e humanística. Para ele, sem disciplinas como filosofia e sociologia, a formação crítica do aluno fica prejudicada.

Alunos pobres prejudicados

A mestranda em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora da rede estadual de São Paulo Sílvia Forato vê tais conhecimentos mantidos nas redes particulares. “Assim, alunos da pública não adentrariam o ensino superior e ocupariam postos menos qualificados”, prevê. “Isso romperia com a recente inserção de pobres nas universidades, aumentando abismos sociais”. Para Piolli, a baixa formação científica, humanística, artística e tecnológica resultaria em alunos com mais dificuldades em acompanhar as mudança sociais. “Se o mundo exige saberes complexos, não cabe simplificar a formação”, argumenta.

Para as escolas privadas, as diretrizes curriculares do novo ensino médio preveem, no artigo 12, a possibilidade de integrar itinerários, garantindo horas mais próximas das anteriores. Além disso, os especialistas avaliam que enquanto as particulares teriam recursos para ofertar itinerários diversos, as públicas ainda enfrentam as consequências da Emenda Constitucional 95 (Teto dos Gastos), de 2016.

Confira: Reforma do Ensino Médio pode piorar evasão nas modalidades técnicas

“Sem estrutura, recursos e podendo submeter alunos a ‘vestibulinhos’ para acessar itinerários, o aluno não “escolheria” o que estudar”, destaca Piolli.“A oferta do itinerário depende mais da necessidade local e possibilidades das redes do que do interesse do aluno. Posteriormente, isso pode prejudicar o ingresso no ensino superior e mundo do trabalho”, acredita.

Trabalho ou faculdade?

Sendo instrumentais, os itinerários técnico e profissional diferem dos cursos técnicos ou de habilitação profissional técnica de nível médio. “Para o Ministério da Educação (MEC), esses cursos curtos de qualificação visam somente ‘propiciar o desenvolvimento de competências básicas ao exercício de uma ou mais ocupações reconhecidas no mercado de trabalho’. E exigem 20% da carga horária do curso técnico, que varia de 800 a 1200 horas”, pondera Piolli.

Para o especialista, é esperado que a habilitação técnica de qualidade se restrinja a escolas públicas com maiores investimentos, “ilhas de excelência, como os institutos federais”, destaca. E essas instituições exigem provas para ingresso. “Restariam às classes mais baixas os cursos de qualificação rápida e de ensino fundamental precarizado”, aponta Forato.

Piolli enxerga a dicotomia “mundo de trabalho para pobres e universidade para ricos” legitimada no artigo 6º da Resolução CNE/CEB nº 3, que define os itinerários formativos.“Diz que esses ‘possibilitam ao estudante aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho’. “Esse ‘ou’ me parece expressar destinos excludentes”, sublinha.

Relação com a economia

Segundo Piolli, o novo ensino médio deve ser analisado junto a outras reformas, como a EC 95, e as reformas trabalhista e da previdência, além do contexto de desemprego e desindustrialização recentes. “As reformas não resolveram o desemprego e precarizaram mais as relações de trabalho”, acredita.

Forato enxerga a escola assumindo a função de preparar funcionários para trabalhos “uberizados”. “O problema não é focar no empreendedorismo, mas cortar conhecimentos científicos. Isso dialoga com necessidade do mercado por um profissional versátil, acrítico e que aceite tudo para sobreviver”, avalia”.

Para Saraiva, o desemprego não será solucionado com o novo ensino médio, mas com políticas públicas em áreas econômicas que gerem postos de trabalho.“Há o discurso de que o desemprego ocorre por falta de mão de obra qualificada e um ensino raso de larga escala resolveria. Porém, os índices de escolarização aumentaram em 30 anos e o desemprego continuou oscilando”, observa.

Veja mais:

Novo ensino médio: pesquisadora aponta falta de estrutura e preparo docente para implementação

Reformas educacionais e seus impactos no ensino são tema de e-book gratuito

Atualizado em 19/11/2021, às 17h45

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