Livros e filmes de Harry Potter podem ser usados por professores de história para discutir conteúdos e temas da disciplina, como explica o mestre em história cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Victor Henrique S. Menezes.

“Eles são documentos que nos ajudam a entender e discutir as sociedades dentro da qual e para a qual foram produzidos”, resume. “Podemos construir uma aula que propicie aos estudantes o conhecimento sobre um fato histórico a partir de um livro ou filme presente em seu cotidiano, mas que também possibilite a construção de um olhar crítico para essas obras que os jovens consomem”, completa.

Conheça sete conteúdos da disciplina de história que podem ser ensinados com o apoio da saga de Harry Potter.

1) Conceito de ditadura

Menezes explica que, no mundo contemporâneo, o conceito de “ditadura” se refere a um governo de uma pessoa ou grupo que monopoliza a administração de um país. “Ainda que existam diferentes formas de governos ditatoriais, todos possuem características básicas como: a supremacia do executivo em detrimento dos demais poderes; o uso da violência pelo Estado como forma de controle social; e o cerceamento dos direitos políticos e individuais dos cidadãos”, acrescenta.

Menezes explica que essas características aparecem na trajetória de Harry Potter em duas situações. A primeira é em “Harry Potter e a Ordem da Fênix”, quando o ministro da Magia Cornélio Fudge, ao se negar a acreditar que Lord Voldemort retornou e achar que Alvo Dumbledore quer tomar o seu cargo, passa a controlar todas as instituições bruxas e a perseguir quem considera inimigo político.

“A segunda é em “Harry Potter e as Relíquias da Morte” 1 e 2, quando Lord Voldemort e seus comensais da morte assassinam o então ministro da Magia Rufus Scrimgeour para se apossar do ministério. Ou seja, há um golpe de estado”, completa Menezes. A partir desses dois momentos, Menezes recomenda ensinar o conceito de ditadura aos alunos, diferenciando-os.

“O surgimento da ditadura de Fudge ocorre por um colapso democrático por via eleitoral, ou seja, quando um líder eleito democraticamente corrompe e destrói as instituições democráticas por dentro. Na história, isso aconteceu na Alemanha de Hitler e na Itália de Mussolini”, exemplifica.

“Já a ditadura de Lord Voldemort surge a partir da tomada violenta do poder, de um golpe de estado, como aconteceu no Brasil em 1964”, aponta.

2) A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)

Para fazer a analogia com a ditadura civil-militar brasileira, a professora de história Victória Zanella indica uma cena de “Harry Potter e a Ordem da Fênix”, na qual a diretora Dolores Umbridge baixa “Decretos Educacionais”, que são leis complementares que modificavam a lei máxima da escola.

“Ao todo, são criados 29 decretos visando garantir o retorno dos ‘bons costumes’ na escola, como a censura de uma revista considerada contra o governo, proibição de grupos estudantis, de meninos e meninas ficarem menos de 20 cm de distância uns dos outros etc.”, explica Zanella.

“Essa é uma boa analogia para explicar os atos institucionais promulgados durante a ditadura civil-militar brasileira, sendo o AI-5 o mais conhecido – que suspendeu garantias constitucionais, permitindo censura, perseguição política e tortura.

Zanella aponta ainda que o filme também demonstra a importância dos grupos de resistência em períodos ditatoriais, o que também aconteceu no Brasil.

“Em Harry Potter, houve a criação da Armada de Dumbledore, iniciativa de estudantes de Hogwarts que criou grupos de estudos escondidos de feitiços e defesa contra a arte das trevas, uma vez que essa atividade era proibida”, pontua.

Zanella também recomenda abordar cenas que demonstram como uma ditadura fere o artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. Na trama, há os pais de Neville Longbottom, colega de escola de Harry, que foram torturados e perderam a memória.

Menezes indica associar o filme com trechos de documentários, com depoimentos de sequestrados políticos da ditadura civil-militar brasileira que foram torturados, caso de Criméia de Almeida e Maria Amélia Telles.

3) Ascensão e queda do nazismo

Menezes aponta que a ditadura de Lord Voldemort, em “Harry Potter e as Relíquias da Morte” 1 e 2, tem caráter totalitário e baseada em ideais racistas e fascistas. “Há a ideologia dos bruxos sangue puro e perseguição e assassinato daqueles vistos como inferiores mediante sua origem sanguínea ou grupo racial dentro da sociedade mágica”, ressalta.

“O regime que se forma, acredita os bruxos, são uma raça superior e esquematiza a eliminação em massa de humanos não-bruxos e de raças vistas como inferiores, caso dos elfos”, relata Zanella.

“Na história, os dois grandes exemplos de governos totalitários com ideais racistas e fascistas foram os de Adolf Hitler (Alemanha) e de Benito Mussolini (Itália)”, relaciona Menezes.

Como atividade, ele indica associar o filme de Harry Potter aos depoimentos de sobreviventes dos campos de concentração nazistas.

4) Escravidão

O filme “Harry Potter e a Câmara Secreta” apresenta a escravização dos elfos domésticos, como Dobby, amigo de Harry. Menezes explica que o assunto pode ser relacionado com a escravidão no Brasil. “Cabe ao professor também apontar as diferentes visões sobre escravidão, muitas delas eurocêntricas”, alerta Menezes.

5) Cultura greco-romana e imperialismo

Menezes aponta que essa cultura está presente no nome de personagens, caso de Draco, Remo, Minerva, Hermione, Amico, Alecto, Abraxas, Agripa, Alastor, Ambrosius, Andrômeda, Antíoco, Argo, Barnabás, Cadmo, Dedalus, Helena, Hermes, Horácio, Mérope, Penélope, Pomona, Severo, Sibila e Sirius.

Já a série “Animais Fantásticos” apresenta 16 criaturas mágicas encontradas nas histórias da antiguidade greco-romana, como: acromântula, basilisco, cavalo alado, cavalo-do-lago, centauro, dragão, esfinge, fênix, grifo, hipocampo, hipogrifo, lobisomem, mantícora, quimera, sereianos e serpente marinha.

Há também a presença do latim nos feitiços utilizados pelos bruxos, como “accio”, “crucio” e “reparo”. “Os territórios do que viria a ser a Inglaterra e Portugal foram colônias da Roma Antiga, chamados respectivamente de Britânia e Luzitânia. O latim, que era a língua dos romanos, esteve presente no território que hoje é Portugal e, a partir dela, formou-se o português moderno. Essa é uma herança da Roma antiga que compartilhamos”, conta Menezes.

“Porém, é preciso destacar que essa herança só chegou até nós por conta de inúmeras violências que marcaram as ações políticas tanto do Império Romano quanto do português. Assim, falar das culturas greco-romanas exige discutir de forma crítica colonização, imperialismo, escravidão, práticas autoritárias e perseguições políticas”, enfatiza.

Segundo Menezes, vale problematizar o fato de Grécia e Roma antiga serem consideradas pelos países ocidentais como a base de suas culturas, apagando-se as contribuições do Egito antigo.

“Tal perspectiva é polêmica, visto a carga racista, eugenista e imperialista que ainda carrega”, conclui.

6) Cartas como documento histórico

Professor de história do Instituto Federal do Paraná (IFPR, campus Curitiba) Edilson Aparecido Chaves explica que as cartas são documentos históricos valiosos devido à sua capacidade de oferecer uma visão detalhada da sociedade, cultura e eventos de uma época específica.

“Utilizar as cartas usadas em Harry Potter promove uma compreensão da importância das fontes primárias, adicionando um elemento lúdico a essa aprendizagem”, relaciona Chaves.

Em sua dissertação para o mestrado profissional no ensino de história “Literatura Infanto-Juvenil Ficcional: uma análise das possibilidades do uso da coleção Harry Potter em aulas de história” (2023), orientada por Chaves, o mestre profissional no ensino de história Carlos Henrique Liegel Svidnitzki indica elaborar uma atividade usando a carta escrita por Lilian Potter em “Harry Potter e as Relíquias da Morte”.

“Os alunos podem realizar uma análise de texto detalhada, identificando informações sobre os personagens e eventos mencionados. Além disso, podem analisar a linguagem, o contexto e o conteúdo da carta para entender a vida cotidiana dos bruxos, as relações familiares e as crenças culturais da época. Por fim, podem examinar como as cartas são utilizadas para transmitir informações pessoais, expressar emoções e manter conexões entre os personagens”, lista Chaves.

7) Importância do passado para entender o presente

A penseira é um artefato utilizado para revisitar lembranças pelo diretor de Hogwarts Alvo Dumbledore em “Harry Potter e o Cálice de Fogo”. “Ele a utiliza para explorar memórias e eventos passados, buscando pistas e estratégias para enfrentar as ameaças atuais, especialmente as representadas por Voldemort e seus seguidores. Ou seja, é uma ferramenta poderosa para compreender o passado e suas ramificações no presente e no futuro”, defende Chaves.

“Dumbledore valoriza a aprendizagem por meio da história viva, das experiências passadas e das lições que podem ser extraídas delas, especialmente da memória”, complementa.

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Crédito da imagem: Warner Bros. Studio

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