Professores de filosofia e de sociologia já devem ter se deparado com o questionamento de alunos sobre a existência de pensadoras e pensadores negros. Tal situação revela uma percepção dos estudantes sobre um problema ainda presente nas ciências humanas, o chamado “racismo epistêmico”.
Historicamente, a formação da filosofia e da sociologia veio de fontes europeias e, posteriormente, norte-americanas. Povos que foram subjugados e colonizados, como os africanos e indígenas, tiveram muitos registros de conhecimento apagados ou subestimados. O resultado dessa exclusão nos campos do conhecimento é que os próprios docentes não tiveram a oportunidade de conhecer outras perspectivas quando estavam nas suas licenciaturas.
“Basicamente, não são autores negros e negras que abordam os problemas que os atingem diretamente na sociedade, tornando-os objetos de uma ótica somente branca”, explica o mestre em filosofia pela Universidade Federal do ABC (Ufabc) e professor da rede pública de São Paulo (SP) Fabiano Bitencourt Monge. Ele observa que o próprio Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) reforça isso, trazendo como autores apenas acadêmicos dessa etnia nas obras indicadas para filosofia e sociologia.
Para completar, filósofos trabalhados nas escolas tiveram posicionamentos racistas em seu tempo, caso de Kant, Hegel e Voltaire. “Ao mesmo tempo, vozes da filosofia negra contemporânea, como o camaronês Achille Mbembe, a afro portuguesa Grada Kilomba e a representante do feminismo negro brasileiro Lélia Gonzalez não são apresentados aos estudantes”, lamenta Monge.
Para promover uma visão mais plural das ciências humanas, o Instituto Claro separou sete planos de aula de filosofia e sociologia que ajudam o professor a levar para a sala de aula os registros históricos de um conhecimento africano pré-Grécia Antiga. Os materiais também apresentam estudiosos negros da atualidade que refletem, em suas obras, sobre as origens e consequências da colonização e do racismo.
As sequências didáticas tratam dos estudos de Achille Mbembe, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Frantz Omar Fanon e também de Martin Bernal, estudioso branco essencial para entender o apagamento histórico do negro nas ciências humanas. É ele o autor da obra Black Athena, que serviu para embasar a tese da influência da cultura egípcia sobre a filosofia grega.
“A intenção não é negar as referências europeias, que fazem parte da nossa cultura, mas incluir outras vozes nessa produção de conhecimento”, finaliza Monge.
As três teses do surgimento da filosofia: grega, africana ou pluriversal?
Este plano explora os pensamentos sobre a origem desse campo do conhecimento. Os alunos são apresentados às três teses do início da filosofia: grega, africana e pluriversal. Com isso, poderão aprender mais sobre a antiguidade, principalmente os períodos faraônico e grego; conhecer a filosofia por perspectivas não eurocêntricas; notar a importância de conhecer a matriz africana dessa ciência e combater o apagamento da produção de conhecimento pelos povos africanos.
Filosofia egípcia no Império Faraônico
Após conhecer a formação do Egito, os alunos serão apresentados aos pensadores – principalmente do campo da ética – anteriores aos gregos Platão e Aristóteles. Entre eles, são destacado Imhotep “O gênio”, Ptah-hotep e Amen-em-ope e sua ética da serenidade.
O livro Black Athena, de Martin Bernal, e o conceito de racismo epistêmico
Os objetivos são apresentar a obra Black Athena, do cientista inglês Martin Bernal, compreender o conceito de racismo epistêmico e a teoria do Estado por John Locke. Ainda não traduzida para o português, Black Athena é uma obra de três volumes e mais de duas mil páginas, na qual Bernal discute a relação que a Grécia tinha com os vizinhos africanos e asiáticos, entre eles, os egípcios e os fenícios. Estes últimos influenciaram a civilização grega e desempenharam papel formativo no povo heleno e, consequentemente, da sua filosofia. Bernal descreve que, a partir do século XVIII e por influência da Revolução Francesa, visões da África e Ásia como fontes para formação grega e europeia foram ideologicamente excluídas.
Conceitos da perspectiva afrodescendente: pretoguês e Améfrica Ladina
Os estudantes poderão conhecer a obra da filósofa, antropóloga, feminista e professora mineira Lélia Gonzalez (1935–1994). Ela defendeu a descolonização da forma como percebemos o mundo, nossa história e linguagem. Segundo a pensadora, o processo de colonização tirou a originalidade histórica e cultural de todo povo amefricano, mesmo sendo o continente africanizado e detentor de raízes indígenas anteriores ao homem branco. Gonzales ainda aponta a importância da memória para promover essa identidade descolonizada, ao garantir uma visão histórica que se sobrepõe ao extermínio, negação e exclusão.
A narrativa de Achille Mbembe e o conceito de necropolítica
Um dos principais pensadores contemporâneos, o filósofo camaronense, Achille Mbembe atualizou o conceito de biopoder de Michel Foucault, considerando agora as relações coloniais e o genocídio. Essa é a base do seu ensaio “Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte (2018)”. Para ele, a estrutura do necropoder se dissemina em setores que controlam as vidas dos que não possuem o direito de existir. Estes são marginalizados e, com isso, vulneráveis a serem massacrados pelas instituições.
Grada Kilomba: a condição da mulher negra no mundo
Plano de aula sobre Grada Kilomba (Lisboa, 1968), escritora afro-portuguesa, filósofa, artista interdisciplinar e feminista negra. Sua obra permite entender o projeto colonial de coisificação do sujeito negro, conhecer a filosofia por uma perspectiva não-branca e debater a percepção da mulher negra no mundo. Entre seus principais livros, destaca-se “Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano”, que traz entrevistas com mulheres negras que nasceram ou vivem na Alemanha. Elas compartilham episódios de racismo ou objetificação em suas trajetórias.
O pensamento de Frantz Fanon e sua obra ‘Pele negra, máscaras brancas’
O plano de aula trata do pensamento do filósofo martiniquense Frantz Fanon (1925–1961). A sequência mostra como trabalhar com os alunos do ensino médio alguns dos seus conceitos, como alienação, humanismo radical, essencialismo tático e essencialismo estratégico. Além disso, permite reflexões sobre o colonialismo que apagou manifestações culturais e filosóficas não-brancas.