Nascida em 24 de junho de 1950, Sueli Carneiro é uma filósofa, escritora e ativista brasileira reconhecida como uma das principais vozes do feminismo negro no país.

Nas últimas quatro décadas, ela misturou mundos diferentes, mas que estão atrelados: a atuação acadêmica e a política, no movimento negro e feminista” resume o doutorando em Ciência Política pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Gabriel Delphino.

“Ela enegreceu o feminismo brasileiro ao denunciar o racismo no interior do movimento feminista hegemônico branco, que não reconhecia a influência racial e a opressão que recaem sobre mulheres negras; também o sexismo no movimento negro, cujo protagonismo era de homens”, analisa o mestre em filosofia política pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Vinícius Santana Cerqueira.

Doutora em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo (USP), Carneiro, porém, enfrentou desafios em sua trajetória acadêmica. Ao tentar ingressar na pós-graduação no campo da filosofia, no início dos anos de 1980, encontrou resistência dos pares em reconhecer que a tradição oral da filosofia africana era, igualmente, filosofia.

“Havia uma característica eurocêntrica na filosofia, e sua tese acabou sendo publicada somente anos depois e no campo da educação”, lembra Delphino.

“Ela viveu aquilo que trata na sua obra, que é o epistemicídio negro — a tentativa de assassinato ou anulação da razão negra, tratando a produção intelectual dessa população como inferior”, complementa Cerqueira.

Frente ao racismo

Além do conceito de epistemicídio negro, o pensamento de Sueli Carneiro trouxe outras contribuições para o entendimento e enfrentamento do racismo antinegro no Brasil, como explica Delphino.

“Carneiro aponta que o racismo não dito, estrutural, funciona de maneira atrelada ao racismo cotidiano, pois eles dependem um do outro e se retroalimentam”, apresenta.

Ainda abordou em sua produção, nas décadas de 1970 e 1980, aquilo que ficou conhecido mais tarde como ‘interseccionalidade’ nas palavras da pensadora Kimberlé Crenshaw (1989), ou seja, a ideia de que as pessoas não são afetadas por apenas um tipo de opressão, mas por uma combinação de fatores, como raça, classe, gênero e orientação sexual.

“Ela explica que as opressões de gênero, raça e classe não têm hierarquia: acontecem simultaneamente e se reforçam, constituindo um processo de asfixia social tripla, que ajuda a entender as desigualdades no Brasil”, afirma Delphino.

“Ela mostra ser impossível compreender a posição social da mulher negra no Brasil sem olhar para esses três produtores de desigualdade, o que é uma contribuição para o feminismo no país”, aponta Cerqueira.

“Dispositivo de racialidade”

Outro conceito importante no pensamento de Sueli Carneiro é o chamado “dispositivo de racialidade”, que articula os conceitos de “dispositivo”, do filósofo francês Michel Foucault, e de “contrato racial”, desenvolvida pelo filósofo jamaicano Charles W. Mills.

No ‘contrato racial”, Mills aponta que, embora a igualdade racial esteja formalmente assegurada em lei, ela não se concretiza na prática por um contrato velado que mantém a população branca no topo da hierarquia social. “Trata-se de um pacto da elite branca que define a negritude como associada a tudo que é negativo, enquanto, por contraste, se apropria de tudo que é considerado positivo”, explica Delphino.

“Já quando falamos em dispositivo, pensamos em algo que é ativado. A partir dessa ativação, elementos como instituições, práticas, discursos e valores que antes pareciam dispersos na sociedade passam a se organizar de forma coesa, tornando evidentes as relações de poder. Carneiro conecta os dois conceitos, de Foucault e Mills, destacando que, no Brasil, quando esse dispositivo é ativado, as hierarquias raciais se estabelecem, ainda que no campo do não dito”, completa

“Com isso, a dificuldade histórica de ascensão social da população negra no Brasil ao longo do século não se deu, necessariamente, por impedimentos legais explícitos, como ocorreu nos Estados Unidos ou na África do Sul, mas a bloqueios operados no âmbito do não dito, por meio do funcionamento desse dispositivo racial. Ele está presente moldando as relações sociais, mas não pode ser facilmente identificado ou apontado”, ensina Delphino.

“A partir disso, para Carneiro, o racismo antinegro no Brasil produz subalternização e transforma a pobreza na condição crônica da existência negra, estabelecendo diferenças de vida e morte entre brancos e negros”, descreve Cerqueira.

Contribuições pela igualdade

Entre suas contribuições para o feminismo negro, Carneiro fundou, em 1988, o Geledés — Instituto da Mulher Negra. “Ela diz que a instituição é filha da redemocratização do país”, conta Cerqueira.

Ela também ajudou a viabilizar a primeira delegacia da mulher no estado de São Paulo, em 1985, quando atuava no conselho estadual da cidade de São Paulo (SP). Em 1992, cria o projeto Rappers e oferece espaços seguros para esses artistas da periferia paulista, que eram vítimas de violência policial. “Ela promoveu uma aproximação histórica entre o movimento hip hop e o feminino”, analisa Cerqueira.

Em 2001, junto à comitiva do Geledés, integrou a Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul.

“O evento trouxe ganhos importantes para o enfrentamento do racismo no mundo, como o reconhecimento da escravidão e do tráfico de africanos como crime contra a humanidade e da importância de cotas raciais nas universidades”, contextualiza Delphino.

Para ele, Carneiro deixa ensinamentos e heranças para intelectuais e ativistas do movimento negro no futuro. “Principalmente de que a atuação política para combater instituições que ainda oprimem deve andar lado a lado com a produção acadêmica e sua reflexão sobre a realidade”, finaliza Delphino.

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Crédito da imagem: RyanJLane – Getty Images

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