Avanços e retrocessos marcam o panorama da LGBTfobia no futebol masculino brasileiro nos últimos anos, como avalia o fundador do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+ Onã Rudá. O grupo agrega as torcidas LGBTQIAPN+ de diferentes clubes do país e emite um documento com os dados observados ao longo do ano.
Em 2021, o Flamengo foi o primeiro clube punido por LGBTfobia no futebol. “De lá para cá, as denúncias que chegam com robusta prova são avaliadas e julgadas; e os clubes, punidos. Não há mais, por parte do tribunal, ambiente de impunidade para esses tipos de expressões de discriminação. A gente pode discutir o conteúdo das punições, mas há o trâmite”, explica Rudá.
Porém, o esporte ainda sofre com a ausência de atletas assumidos e com a resistência dos clubes em promover mudanças estruturais.
Como a homofobia no futebol se expressa?
Onã Rudá: A LGBTfobia se manifesta no futebol de muitas formas, sendo a principal delas a naturalização da ausência de pessoas LGBTQIAPN+ no esporte, como algo que passa quase despercebido. Há uma compreensão coletiva e distorcida de que o futebol não é para essa comunidade. Por outro lado, há expressões de preconceito e discriminação que a sociedade consegue perceber e para as quais a gente consegue chamar a atenção: são os cânticos homofóbicos e lgbtfóbicos. Há essa identificação da nossa identidade como algo ruim e, quando se tenta ofender ou depreciar um rival, é a identidade LGBTQIAPN+ que é acionada. Essa talvez seja a maior forma de manifestação coletiva de LGBTfobia dentro e fora dos estádios, porque acontece não apenas no momento do jogo, mas também nas redes sociais e nas situações cotidianas que envolvem o futebol.
Qual é o cenário para os jogadores?
Rudá: Não temos hoje no cenário brasileiro jogadores do gênero masculino que assumam qualquer identidade que não seja heterossexual. Isso não mudará se não dermos para os atletas a confiança de que o clube vai protegê-lo. É uma situação complicada porque envolve ambiente de vestiário, mercado, torcida, diretoria e a família desses atletas. A gente ainda não tem, por parte dos clubes, o posicionamento adequado.
E para os torcedores?
Rudá: Para os torcedores, houve avanços importantes, com o aumento de pessoas LGBTQIAPN+ reivindicando o seu lugar no futebol via redes sociais e no cotidiano. Nos eventos da comunidade, por exemplo, é visível ter mais pessoas aparecendo com camisas de time, o que não acontecia com frequência. É uma revolução silenciosa, mas com impactos gigantescos na sociedade. Amplia o entendimento de que somos um grupo com direitos que pode vivenciar todos os ambientes da vida, incluindo o futebol.
Quais os casos recentes de homofobia no futebol?
Rudá: Todos vão pelo mesmo caminho: cânticos homofóbicos nos estádios, alguns registrados pelos árbitros, outros não. Mas denunciamos aqueles não registrados pelos árbitros no Tribunais de Justiça Desportiva (TJDs), para que se faça uma avaliação e o julgamento.
Como funciona uma denúncia na Justiça Desportiva do futebol?
Rudá: Mandamos a notícia da infração, um procurador avalia e, se entender que há crime, abre-se denúncia na comissão disciplinar, na qual um relator é designado para avaliá-la. O processo é julgado e, dependendo da avaliação da maioria simples dos auditores, o clube, a instituição ou a pessoa em questão é punida com multas administrativas. Se condenado na comissão disciplinar, pode-se recorrer para o pleno (que pode confirmar, anular ou modificar a sentença). Para isso não ocorrer, há um dispositivo de acordo disciplinar, no qual o infrator compromete-se a realizar ações.
Como têm sidos as ações no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) em relação à homofobia?
Rudá: A primeira mudança foi o reconhecimento do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ+ como agente interessado diretamente nas questões do futebol, em especial nas questões de identidade. Além disso, antes, a gente mandava a denúncia e dependia do procurador para ela ser aceita ou não. Alguns recusavam. Tivemos o caso de um procurador que reuniu os demais para dizer que não se deveria aceitar as nossas denúncias porque a gente não fazia parte da estrutura do futebol tradicional. Esse entendimento mudou desde 2021, quando o Flamengo foi o primeiro clube punido por LGBTfobia no futebol. De lá para cá, as denuncias que chegam com robusta prova são avaliadas e julgadas; e os clubes, punidos. Algumas podem ser arquivadas, mas não há mais, por parte do tribunal, ambiente de impunidade para esses tipos de expressões de discriminação. A gente pode discutir o conteúdo das punições, mas há o trâmite. Inclusive, o STJD julga mais casos de LGBTfobia do que de racismo.
Em quais aspectos ainda são necessários avanços?
Rudá: É necessário avançar tanto em toda estrutura do futebol, que executa, planeja, pensa, articula, quanto também na Justiça Desportiva, no sentido de ampliar a percepção de diversidade e inclusão para garantir que a comunidade LGBTQIAPN+ vivencie o futebol de forma plena. Isso precisa ser trabalhado especialmente nos clubes que lidam com a torcida, que estão na ponta.
Como tem sido o papel dos clubes?
Rudá: Falar de clubes de forma geral é até injusto com aqueles que têm trabalhado de forma mais atenciosa, detalhada, com cuidado com essa galera que frequenta o estádio. Mas, de forma geral, o papel é tímido e distante. Alguns se resumem a publicações na internet; outros, nem isso.
Quais avanços e retrocessos você destacaria em relação ao último ano?
Rudá: Houve retrocesso no diálogo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que não conseguimos retomar. Há ausência da CBF, e ela que é uma parceira importante para as atividades que o Coletivo desenvolve ao longo do ano, que ficam comprometidas. O que acho importante destacar é que, agora, com o Coletivo, o futebol brasileiro tem uma rede de observadores antidiscriminação dentro dos jogos organizados pela CBF no Brasil, lembrando que a discriminação dentro do estádio não é tolerável. As manifestações coletivas de LGBTFobia ainda conseguimos levar para o tribunal desportivo, mas, infelizmente, a manifestação de preconceito que é individual ainda não é tão condenável como o racismo. No mais, é importante para a pessoa LGBTQIAPN+ conhecer as torcidas que existem nos seus times e saber que estamos aqui buscando transformar o futebol brasileiro, e mudar a consciência coletiva da sociedade também.
Veja mais:
Times de futebol LGBTQ+ criam ambiente seguro para essa população praticar o esporte
Futebol freestyle: meninas ainda sofrem preconceito na modalidade
Inclusão no futebol: autistas ganham torcidas próprias e camarotes adaptados
Seleção brasileira de futsal Down serve de inspiração para juventude com a síndrome
Conheça as regras e entenda como funciona o futebol de cegos
Audiodescrição no futebol permite que deficientes visuais acompanhem detalhes de partidas
Crédito da imagem: Shannon Fagan – Getty Images