“Morro Velho” foi gravada inicialmente no disco “Travessia”, de 1967. Na letra, Milton Nascimento trata dos caminhos destinados a duas crianças, uma preta e outra branca, que moram na mesma fazenda. Explorando a desigualdade e o preconceito racial, a canção permanece atual ao apresentar como são diferentes as oportunidades dadas a esses dois personagens.
“É um belo retrato da sociedade brasileira pós-escravagista, entretanto, com todos os traços do escravagismo que ainda se mantêm presentes. E em uma região especial. Estamos falando de Minas Gerais, onde o próprio meio de produção rural preserva nas suas estruturas todas estas manifestações de uma maneira quase que intacta”, analisa o doutor em música e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul no programa de pós-graduação em Estudos de Linguagem William Teixeira .
Uma década depois, a música ganha sua versão definitiva na interpretação de Elis Regina, no álbum “Elis”. “Na minha opinião, essa música tem tudo. É uma junção maravilhosa da melodia com o que é dito. E a maneira pela qual a harmonia vai caminhando, vai criando uma atmosfera com total consonância com o que está sendo dito”, analisa o produtor musical João Marcello Bôscoli, filho de Elis Regina.
No podcast, ele conta a reação da mãe a uma situação de racismo em seu prédio e traz percepções sobre a atmosfera da canção. “‘Morro Velho’ é uma dessas joias que sempre que forem ouvidas vão entrar de certa forma no coração das pessoas, na cabeça”, resume Bôscolli.
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Música: Introdução de Morro Velho, de Milton Nascimento, com Reynaldo Bessa ao violão
João Marcello Bôscoli:
‘Morro Velho’ é uma dessas joias que sempre que forem ouvidas vão entrar de certa forma no coração das pessoas, na cabeça. Ela é muito natural, é muito intuitiva, emotiva e, simultaneamente, ela é complexa, extremamente inteligente, é uma forma matematicamente muito bem construída. É isso, Milton Nascimento é uma força da natureza.
Olá, eu sou João Marcello Bôscoli, sou produtor musical e completamente apaixonado por música.
William Teixeira:
E a música do Milton Nascimento não apenas traz essa ruptura dentro do cenário da MPB, trazendo uma voz do interior do Brasil, como traz uma leitura dessa voz que já carrega um viés crítico importante.
Meu nome é William Teixeira, eu sou professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul no curso de música e também no programa de pós-graduação em estudos de linguagem. E eu tento trazer um pouco da voz daquele que pratica a música pra dentro da pesquisa acadêmica.
Vinheta: Instituto Claro – Cidadania
Versão de “Morro Velho” interpretada em live de 2021 pelo próprio Milton Nascimento
Marcelo Abud:
“Morro Velho” é uma canção do disco Travessia, de 1967. Nela, Milton Nascimento fala sobre os caminhos diferentes na vida de duas crianças, uma preta e outra branca, que moram na mesma fazenda.
William Teixeira:
O que a gente vê de fato é a descrição muito singela de um relevo, de um espaço com todas as suas cores, os seus cheiros e que, sem dúvida, a gente tem que remeter àquela que o próprio Milton diz que é a grande referência dele na escrita da canção, que não é a música, mas é o cinema.
João Marcello Bôscoli:
Ela fala de um ambiente que eu me identifiquei automaticamente, por causa do fato de morar nas montanhas, perto da cidade de São Paulo, ali na Serra da Cantareira. Ali eu vi algumas coisas pela primeira vez, porque fala de sertão, da minha terra, fazenda – tinha uma fazenda próxima à minha casa onde a gente ia comprar leite e queijo – o negócio do ‘peixe bom dá no riacho’ tinha lá também. E aí vai, sentar no morro e ver tudo verdinho, né?
William Teixeira:
E o que a gente vê, nesta primeira estrofe de ‘Morro Velho’ não mais é do que um plano aberto em forma de canção.
Introdução de ‘Morro Velho’ fica de fundo
João Marcello Bôscoli:
Parecia uma descrição musical do lugar que eu estava ali descobrindo, se fosse um filme, a locação do filme, a beleza das cores, dos aromas ali e com o tempo eu fui entendendo o roteiro e o que o diálogo – mantendo esta metáfora – quis dizer.
Milton Nascimento:
Eu gostaria que acontecesse um filme. E isso aconteceu de verdade, né, na fazenda de uma tia do Wagner Tiso, em Minas.
Música: “Morro Velho” (Milton Nascimento)
No sertão da minha terra
Fazenda é o camarada que ao chão se deu
Fez a obrigação com força
Parece até que tudo aquilo ali é seu
William Teixeira:
É uma canção que é um belo retrato da sociedade brasileira pós-escravagista, entretanto, com todos os traços do escravagismo que ainda se mantêm presentes. E em uma região especial, né, estamos falando de Minas Gerais onde o próprio meio de produção rural preserva nas suas estruturas todas estas manifestações de uma maneira quase que intacta. Esse passado só ficou pra trás na aparência. Na essência das relações entre o filho do branco e o filho do preto essa distância permanece intransponível. Não há brincadeira, não há relação mais amistosa que seja capaz de atravessar esse limite que a gente não tem por vias do próprio sistema maneira nenhuma de superar.
Então, quando a gente observa essa relação entre ambos os amigos, entre aspas apenas separados por sua cor, já que em todas as outras atividades eles estão andando lado a lado, a gente vai observar então que essa distância ela sempre existiu. Ela apenas se torna e se manifesta no futuro, né, quando ambos já estão mais velhos.
Música: “Morro Velho” (Milton Nascimento), com Elis Regina
Filho de branco e do preto
Correndo pela estrada atrás de passarinho
Pela plantação adentro
Crescendo os dois meninos, sempre pequeninos
João Marcello Bôscoli:
Na verdade, até minha mãe morrer, eu não sabia da existência de algumas coisas do mundo: o antissemitismo, o racismo, a homofobia… era uma coisa para mim desconhecida. Claro que é apenas uma sensação capturada por uma criança.
Eu soube uma vez que teve uma pessoa que ela gostava muito que, no prédio que ela morava, foi pedido àquela pessoa, por ser preta, que ela pegasse o elevador de serviço e a Elis ficou muito brava e se mudou do prédio, foi embora do prédio onde ela alugava ali, mas foi assim muito rápido. Isso aconteceu.
William Teixeira:
Quando a gente observa os momentos em que a harmonia se torna mais densa, vão ser exatamente nesses momentos onde, de certa forma, a voz lírica, digamos assim, percebe que as coisas estão muito boas, mas existe uma sombra de um estranhamento (com arranjo da música de fundo) que nunca deixa de ocorrer.
Quando ambos estão correndo na plantação adentro, né, já começam a adentrar um cenário onde não era simplesmente um cenário de brincadeira, mas um cenário de trabalho. Aquela brincadeira que se dá dentro da plantação, na verdade, apresenta pro filho do preto o lugar de trabalho do qual ele não tem como escapar.
Música: “Morro Velho” (Milton Nascimento), com Elis Regina
Filho do senhor vai embora
Tempo de estudos na cidade grande
Parte, tem os olhos tristes
Deixando o companheiro na estação distante
William Teixeira:
O filho do branco sim pode entrar no trem e estudar, ir embora e fazer o que quiser da vida dele, mas o filho do preto está fadado a permanecer naquele lugar. Vai ser o lugar onde ele vai nascer, vai viver e vai morrer, porque você não tem possibilidade de sair dessa estrutura social quando você está preso a ela.
João Marcello Bôscoli:
Na minha opinião, essa música tem tudo. É uma junção maravilhosa da melodia com o que é dito. E a maneira através da qual a harmonia vai caminhando – a progressão harmônica – ela vai criando uma atmosfera com total consonância com o que está sendo dito. Vai ganhando uma densidade assim dramática junto com a letra.
William Teixeira:
De uma maneira até sútil, a gente pode dizer, para que seu viés crítico se torne perceptível e, ao mesmo tempo, como toda boa crítica, se torne uma voz que penetra sem doer na sua entrada, mas que nos faz refletir a posteriori. Então, mesmo as vozes, né, dos filhos do branco, como é o meu caso, como é o caso de muitos de nós, escuta sem tanto estranhamento uma coisa como essa e depois começa a pensar que ‘puxa, eu faço parte disso’. E eu acho que essa é uma boa crítica, né, é assim que as boas críticas são feitas.
Milton Nascimento em depoimento de 2014:
Eu gostava de cantar, tocar baixo, tocar violão, mas não tinha assim o negócio de compor muito não. Até que um dia fizeram a minha cabeça e eu falei ‘tá bom, vou começar a compor, mas eu só vou compor coisa que eu acredite e que eu possa tocar o coração das pessoas do mesmo jeito que elas tocarem o meu, só a verdade e nada mais. E é assim…
Música “Morro Velho” (Milton Nascimento)
Já tem nome de doutor, e agora na fazenda é quem vai mandar
E seu velho camarada, já não brinca, mas trabalha.
William Teixeira:
Essa solução ela se dá no interior de cada um. No interior do filho do branco, a solução foi continuar mantendo essa sua hegemonia social, tranzendo as mesmas figuras, como a sinhá que ele apresenta, o seu demarcador de agora ter o estudo, né, que é importante não porque ele aprende nada, mas porque agora ele ganha uma notoriedade nessa construção social. Mas, pro filho do preto, a sua solução, já que ele não brinca mais, ele trabalha, que é uma solução que eu creio que seja genial a leitura que a Elis Regina faz.
(cantarolar de Elis Regina ao fundo) No final da sua gravação, ela acrescenta uma coisa que na gravação do Milton Nascimento não há, que é um cantarolar que remete diretamente aos cantos de trabalho – aquelas melodias que os trabalhadores cantam enquanto estão executando as suas atividades. E um cantar extremamente resignado. Então, essa resignação frente a uma realidade instransponível é o que nos dá esse viés crítico tão forte. Aquilo que era uma relação tão inocente se transforma em um retrato dessa distância e ao qual o narrador não apresenta nenhuma solução. A solução quem pode dar somos nós que escutamos.
Versão recente da música em que Milton incorpora o cantarolar no final é ouvida ao fundo
Marcelo Abud:
A versão que imortaliza “Morro Velho” é gravada em 1977 no álbum “Elis”. Ao falar da amizade de dois meninos, um branco e um preto, que vivem no campo, a canção faz uma análise das desigualdades sociais e do preconceito racial, quando, ao crescerem, não “podem” manter a amizade da infância.
Marcelo Abud para o podcast de Cidadania do Instituto Claro.
Que Milton nos leve onde deveríamos todos habitar!
Gratidão