Ouça também em: Ouvir no Claro Música Ouvir no Spotify Ouvir no Google Podcasts Assina RSS de Podcasts

Antônio Carlos Belchior, ou simplesmente Belchior, faria 75 anos em 26/10. A obra do cantor e compositor cearense tem sido gravada por artistas da atual geração, mas foi no projeto “Amarelo”, de Emicida, que muitos jovens entraram em contato com sua poesia. “Considero o Emicida um dos gênios da sociedade atual, da musicalidade, e trazendo para as gerações mais novas aquelas palavras de força, de denúncia, de grito. Tenho certeza que, a partir dali, muitas pessoas tiveram a oportunidade de conhecer Belchior”, afirma Vannick Belchior, filha mais nova, que tem se dedicado a cantar as músicas do pai.

Vannick Belchior, filha mais nova do compositor e cantor (crédito: acervo pessoal)
Vannick Belchior, filha mais nova do compositor e cantor (crédito: acervo pessoal)

Belchior apareceu para o grande público em 1971, quando, há 50 anos, venceu o Festival Universitário da MPB, da Tupi/RJ, com “Na Hora do Almoço”, em que já confrontava o cenário trazido pela ditadura e denunciava a fome por comida e por democracia, além do conflito de gerações. “As pessoas na sala do almoço estão ligadas pelo medo e, ainda assim, elas anunciam a hora do almoço, como se aquele núcleo social fosse uma resistência”, analisa a cantora e pesquisadora musical Naira Marcatto, do podcast “Tapa na Orelha”. No áudio, as duas analisam canções e mostram sua atualidade.

Veja mais:

30 anos sem Gonzaguinha: filho do compositor analisa ‘Comportamento Geral’

Transcrição do Áudio

Música: introdução instrumental de “Na Hora do Almoço” (versão de Reynaldo Bessa)

Naira Marcatto:
O lado mais atual dele, eu acho que é a maneira de falar do sentimento das minorias. Eu não sei se o Belchior que estava à frente do seu tempo ou se os problemas não mudam. É lógico, algumas coisas mudaram, outras andaram para trás…
Eu sou a Naira Marcatto, cantora, pesquisadora musical, ensaísta e podcaster no “Tapa na Orelha”.

Vannick Belchior:
Alguns fatores sociais – eles se tornam mais latentes. Então a gente tem como enxergar aquilo de uma forma mais clara. Eu acredito que seja isso que esteja acontecendo neste momento, da geração de hoje enxergar muita coisa que naquela época, anos e anos atrás, ele já enxergou, e ele externalizou em composições, em musicalidade, com base em realidades que se aplicam, independente do tempo e do espaço.
O meu nome é Vannick Belchior.

Sobe som de “Na Hora do Almoço” (Belchior), com Reynaldo Bessa
No centro da sala,
Diante da mesa,
No fundo do prato,
Comida e tristeza

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo

Marcelo Abud:
Há 50 anos, “Na Hora do Almoço” venceu o IV Festival Universitário de Música Brasileira, promovido pela TV Tupi do Rio de Janeiro. Cinco anos depois, em 1976, Belchior lançou o álbum “Alucinação”. Neste podcast, o Instituto Claro entrevista a filha, Vannick Belchior, e a pesquisadora Naira Marcatto, para entender a atualidade da obra do artista.

Naira Marcatto:
“Na Hora do Almoço” é a música com que ele surge no cenário, né?

Vannick Belchior:
Foi ali que as coisas começaram realmente a acontecer. Então essa música ela já mostra as questões familiares. Na musicalidade do Bel, essas questões da família – até porque eu acredito que a família seja a primeira comunidade – a nossa interação com a família vai ter total reflexo com a nossa cidadania, com a nossa postura perante a sociedade. Então eu enxergo muito isso…

Naira Marcatto:
É um retrato de um momento familiar, que revela um medo daquele núcleo social, o medo da morte, o medo do futuro. E sob um outro prisma, é o que a gente vive coletiva e globalmente agora e ainda com a questão da pandemia aí. Todas as mudanças econômicas também que a gente vem passando.

“Na Hora do Almoço” (Belchior)
Medo, medo, medo, medo, medo, medo

Naira Marcatto:
No Tropicalismo, por exemplo, a gente tem panis et circenses, as pessoas na sala de jantar, de uma classe média que não se preocupa muito com nada, além dos seus desejos mais particulares e passa pela vida preocupadas em nascer e morrer. Aqui a gente não tem o pão, ou tem só o pão, mas não tem essa apatia: as pessoas na sala do almoço, em vez da sala de jantar, elas estão ligadas pelo medo e, ainda assim, elas anunciam a ‘hora do almoço’, como se aquele núcleo social fosse uma resistência. E onde todo mundo fica calado, cada um tem seus segredos, suas brigas, seus anseios, seus desejos, que não são compartilhados. A única coisa que é compartilhada com a gente, ouvinte, são os afetos do narrador dessa cena.

Música: “Na Hora do Almoço” (Belchior)
Cada um guarda mais o seu segredo,
Sua mão fechada
Sua boca aberta

Naira Marcatto:

E em cima de tudo isso, ele faz uma referência a uma prece, como se ele colocasse como elemento dessa cena, da “hora do almoço”, o desespero…. – que quando ele vai repetir, ele fala o verso ‘senão chega a morte ou coisa parecida’. Na repetição da palavra ‘parecida’, ele diz ‘Aparecida’, quase que numa interjeição, numa súplica.

Vannick Belchior:
Ele expressa muito uma ‘nordestinidade’, nessa canção, que também está muito presente na obra dele. Esse canto interiorano, que era o canto das lavadeiras, era o canto que ele teve muito – ele teve um forte acesso a isso, ele é de Sobral, como todos nós sabemos – então, ele teve muito acesso à cantoria, nesse âmbito, no âmbito do interior, no âmbito do nordeste. Então eu vejo muito isso, da “Hora do Almoço”, sabe? Eu enxergo essa canção muito como raiz, começo de tudo.

Naira Marcatto:
Já anuncia muito do que ele vem dizer em “Mote e Glosa” e “Alucinação”, em seguida.

Música: “Na Hora do Almoço” (Belchior), com Vannick Belchior
Deixemos de coisas,
Cuidemos da vida,
Senão chega a morte
Ou coisa parecida,
E nos arrasta moço
Sem ter visto a vida
Ou coisa parecida aparecida

Marcelo Abud:
45 anos depois do lançamento do álbum Alucinação, ainda somos os mesmos?

Naira Marcatto:
Dá pra entender “Alucinação”, inteiro, como uma narrativa. E nessa narrativa tem essa personagem, o rapaz latino-americano, que é o narrador. Quem ele é? Como é o mundo que ele vive? Como ele vê esse mundo? Como ele queria que o mundo fosse e fosse visto? Os problemas, a história, enfim. Ele tem um discurso direto que todo mundo – independente do grau de escolaridade e de cultura – pode entender.

Música: AmarElo (Sujeito de Sorte) (Belchior), com Emicida, Majur e Pabllo Vittar
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro

Marcelo Abud:
Presentemente, Emicida fez um elo de amor entre Belchior e a nova geração.

Vannick Belchior:
E trazendo aquelas palavras de força, de denúncia, de grito. Eu tenho certeza que a partir dali muitas pessoas tiveram a oportunidade de conhecer Belchior, de conhecer as ideias, de conhecer aquela revolução que houve. É uma música que tem total representatividade e diz muito, também, sobre a importância desse verso ‘gritado’ pelo meu pai. Na voz do meu pai, fez toda a diferença.

Música: “Sujeito de Sorte” (Belchior)
Tenho sangrado demais
Tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri
Mas esse ano eu não morro

Naira Marcatto:
“Sujeito de Sorte” é uma canção que se comporta como a letra diz: aquele ‘presentemente’ quer também dizer que de alguma forma esse texto está sempre no presente. O Emicida disse alguma coisa como o sujeito de sorte ser mais importante, hoje, do que na época do lançamento de “Alucinação”. E ele tem razão quando ele fala isso.

Marcelo Abud:
Em uma de suas músicas, Belchior diz que não estava interessado em teorias. O compromisso do poeta e cantor era com a realidade.

Naira Marcatto:
E “Alucinação” tem essa camada, né, que o que interessa é o coletivo, que ninguém tem nada a ver com a identidade de ninguém, com a liberdade de ninguém. E é interessante que muita gente vê “Alucinação” como uma contradição em si, que ele diz que não está interessado em ‘nenhuma teoria’, nem nessas ‘coisas do oriente’, ‘romances astrais’, mas que saí pregando o amor, né, o amar e mudar as coisas. Só que no universo dele são coisas complementares. Para o Belchior, tudo é ação. Então o amor ao próximo acontece, se realizado. A mudança, né, vem daí.

Música: “Alucinação” (Belchior), com Humberto Gessinger
Minha alucinação é suportar o dia a dia
Meu delírio é experiência por coisas reais
Tão reais

Música: base instrumental da versão de Reynaldo Bessa para “Na Hora do Almoço” fica de fundo

Marcelo Abud:
Desde que surge com “Na Hora do Almoço” e em boa parte de sua obra, Belchior denuncia a fome por comida e democracia, além do conflito de gerações. As composições do saudoso poeta refletem a resistência a toda forma de discriminação, a ruptura com velhas estruturas, o amor e a luta por igualdade e justiça.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

0 Comentários
Inline Feedbacks
View all comments

Receba NossasNovidades

Captcha obrigatório
Seu e-mail foi cadastrado com sucesso!

Receba NossasNovidades

Assine gratuitamente a nossa newsletter e receba todas as novidades sobre os projetos e ações do Instituto Claro.