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No início de sua carreira, nos anos 1970, Gonzaguinha era perseguido pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) por criar músicas de protesto ao regime militar. Com isso, ganhou o apelido de “cantor rancor”, ao ter muitas de suas composições censuradas. Entre as criações mais marcantes deste período está “Comportamento Geral”, de 1972. A letra, que permanece atual, revela desigualdades sociais e, a partir de forte ironia, demonstra o processo de submissão de muitos em benefício de poucos. No ano em que a morte do compositor completa 30 anos, o Instituto Claro traz uma análise de sua icônica canção.

“Ela não é necessariamente uma crítica política, mas também é uma baita crítica social em relação à estruturação da sociedade, porque fala do dia a dia do brasileiro, da questão do trabalhador”, afirma o jornalista cultural Pedro Henrique Pinheiro. A atualidade da música é comprovada por dezenas de gravações recentes de Elza Soares, Ney Matogrosso, Liniker, Xênia França, entre outros. Pinheiro destaca a versão do rapper Criolo, em edição do Prêmio da Música Brasileira, de 2016.

Ouça também: A atualidade de “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga

“Eu lembro que gerou muita aclamação na época, por ele dar um corte no eu lírico que o Gonzaguinha criou, falando que ‘não tá certo’. Eu acho que essa agressividade que ele colocou foi bem importante, até para as pessoas que talvez não entendessem a letra, terem uma nova visão sobre aquilo. No final das contas, é uma música que consegue ter um sentido amplo para as minorias”.

gonzaguinha comportamento geral
Capa de ‘Comportamento Geral’ com Gonzaguinha e Daniel Gonzaga ainda criança (crédito: reprodução)

Ironia de Gonzaguinha

No podcast, o Instituto Claro ouve também o filho de Gonzaguinha, Daniel Gonzaga. Para ele, o pai – a quem chama de Gonzaga – dá voz às classes populares em versos irônicos, como “você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado”. “É uma música que eu considero muito a cara do Gonzaga, porque o Gonzaga é um autor muito cotidiano. E ele conseguiu perceber naquele momento o que nós estamos percebendo hoje, que o Brasil não muda. Não muda suas esferas de poder, não muda em termos das suas ‘castas’, dos diálogos das suas oligarquias com suas classes menos abastadas”, diz. No áudio, outros aspectos da música são apontados pelos entrevistados, que ainda trazem outras composições de Gonzaguinha que utilizam de ironia para retratar a sociedade brasileira.

Veja mais:

Gravações e letras do CD “Comportamento Geral”

 

Transcrição do Áudio

Música: “Comportamento Geral” (Gonzaguinha), introdução instrumental de Daniel Gonzaga, de fundo

Daniel Gonzaga:
“Comportamento Geral” é ainda hoje um retrato da nossa sociedade. Infelizmente continuará sendo, porque o Brasil nunca muda, nunca mudará.
Meu nome é Daniel Gonzaga, eu sou cantor, sou compositor.

Pedro Henrique Pinheiro:
A batalha do trabalhador, diária, que nunca é compensada de fato; salário baixo… enquanto isso tem gente que, com menos esforço, consegue mais.
Meu nome é Pedro Henrique Pinheiro, jornalista, na área de cultura/música, colaborador do site “Tenho Mais Discos Que Amigos”, tenho um projeto chamado “Janelas Sonoras”, que é voltado para a música brasileira.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Introdução de “Comportamento Geral” fica de fundo

Marcelo Abud:
O que a música “Comportamento Geral”, de Gonzaguinha, prestes a completar 50 anos, escrita no período mais crítico da ditadura civil militar no Brasil, pode dizer sobre a sociedade do nosso país nos dias de hoje?

Pedro Henrique Pinheiro:
Ela conseguiu uma certa fama muito interessante por, não necessariamente ser uma crítica política, mas também é uma baita crítica social, em relação à estruturação da sociedade, porque fala do dia a dia do brasileiro, da questão do trabalhador.

Música: “Comportamento Geral” (Gonzaguinha)
Você deve notar que não tem mais tutu
E dizer que não está preocupado
Você deve lutar pela xepa da feira
E dizer que está recompensado

Pedro Henrique Pinheiro:
Resumidamente, a letra de “Comportamento Geral”, de forma irônica, né, critica a maneira como as classes superiores se sobrepõem em termos de direitos, de riqueza, de qualquer coisa, em cima dos menos favorecidos. É um retrato da sociedade brasileira. Ele fala de tutu, de coisas bem brasileiras, que eu acho que geram essa identificação. Também tem a questão do uso das palavras cerveja e samba e remete de certa forma à política do pão e circo, que é justamente oferecer distração para as camadas mais populares; evitar que elas se rebelem.

Música: “Comportamento Geral” (Gonzaguinha), com Daniel Gonzaga
Tudo vai bem, tudo legal
Cerveja, samba e amanhã, seu Zé
Se acabarem teu carnaval

Marcelo Abud:
Neto de Gonzagão e filho de Gonzaguinha, Daniel Gonzaga dá sequência à obra da família com um trabalho de pesquisa e composições próprias. Em 2015, o artista gravou um trabalho com as músicas do pai, que ele chama de Gonzaga.

Daniel Gonzaga:
“Comportamento Geral” é uma música que eu considero muito a cara do Gonzaga, porque o Gonzaga é um autor muito cotidiano. E ele conseguiu perceber naquele momento o que nós estamos percebendo hoje, que o Brasil não muda. Não muda suas esferas de poder, ele não muda em termos das suas, entre aspas, castas, em termos dos diálogos das suas oligarquias com suas classes menos abastadas. Daí os versos, né, ‘você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado’, trazendo esse paradoxo, que obviamente quem está desempregado não tem patrão. Ou ‘você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado’. É uma ironia fina que traduz o comportamento social brasileiro dos anos 60 e 70 e que, infelizmente, ainda traduz esse mesmo sentimento, esse mesmo pensamento, esse “modus operandi” da sociedade brasileira.

Música “Comportamento Geral” (Gonzaguinha), com Daniel Gonzaga
Você deve rezar pelo bem do patrão
E esquecer que está desempregado
Você merece
Você merece

Pedro Henrique Pinheiro:
É uma letra profunda, complexa, mas que, ao mesmo tempo, você consegue entender ela de maneira fácil, seja pra galera que está ali na cerveja e no samba, que tem que se contentar com pouco, até a galera que está oferecendo isso. Porque dá a entender que o eu lírico é uma dessas pessoas abastadas, que está direcionada a falar para os menos favorecidos, falando ‘olha, você merece. Parabéns. É isso’.

Música: “Comportamento Geral” (Gonzaguinha), com Daniel Gonzaga
Você deve aprender a baixar a cabeça
E dizer sempre: muito obrigado
São palavras que ainda te deixam dizer
Por ser homem bem disciplinado

Pedro Henrique Pinheiro:
Se você é uma pessoa abastada e ouve uma coisa dessas, não necessariamente você vai mudar de ideia, mas você entende que a crítica é direcionada não necessariamente a você, mas ao sistema que está fazendo tudo isso.

Marcelo Abud:
Elza Soares, Lineker, Ney Matogrosso, Xênia França e intérpretes de diferentes gêneros têm dado novas versões a esse “Comportamento Geral” da sociedade brasileira. Entre eles está Criolo, que homenageou Gonzaguinha no 27º Prêmio da Música Brasileira, em 2016.

Criolo:
Ninguém merece, porque não tá bem. Porque não tá legal. Cerveja, samba e amanhã, Seu Zé, no Brasil, homofobia matando geral.
Ninguém merece, porque não tá bem. Porque não tá legal. Cerveja, samba e amanhã, Seu Zé, no Brasil, racismo matando geral.
E se você é pela causa, você pode se levantar, em nome desse homem maravilhoso chamado Gonzaguinha, você pode se levantar por essa ironia, você pode levantar, porque ‘ninguém merece’.

Pedro Henrique Pinheiro:
A versão do Criolo, eu lembro que gerou muita aclamação na época, por ele ainda atualizar a letra, dar um corte no eu lírico que o Gonzaguinha criou, falando que ‘não tá certo’. Eu acho que essa agressividade que ele colocou foi bem importante, até para as pessoas que talvez não entendessem a letra, terem uma nova visão sobre aquilo. No final das contas, é uma música que ela consegue ter um sentido amplo pras minorias, situação de desvantagem social…

Marcelo Abud:
Daniel Gonzaga cita outras canções compostas pelo pai que têm um propósito parecido com o de “Comportamento Geral”, ao criticarem, com ironia, aspectos da sociedade brasileira.

Daniel Gonzaga:
“Dias de Santos e Silvas”, que fala do cotidiano brasileiro de esperar no ônibus, de pegar fila, de passar calor, de jogar no bicho…

Música: “Dias de Santos e Silvas” (Gonzaguinha), com Daniel Gonzaga
A tarde transcorre calma e quente
Nas ruas, ao sol, fervilha gente
Batalham, como eu, o leite e o pão
Que o gato bebeu e o rato roeu

Daniel Gonzaga:
Se divide em manhã, tarde e noite de um dia do trabalhador brasileiro. Junto a ela coloco também a ironia fina de sorriso nos lábios…

Música: “Um sorriso nos lábios” (Gonzaguinha)
Vidro moído ou areia no café da manhã
E um sorriso nos lábios
Ensopadinho de pedra no almoço e jantar
E um sorriso nos lábios

Daniel Gonzaga:
… que mostra o cidadão brasileiro comendo vidro e areia no café da manhã, mas com um sorriso nos lábios, tendo sempre aquele pensamento utópico de sonhar.

Música: “Um sorriso nos lábios” (Gonzaguinha)
Mas sonha que passa ou toma cachaça

Daniel Gonzaga:
E a última eu boto “Pacato Cidadão” que anuncia que: ‘assim de repente, deixei de ser gente, sou mais um bicho na rua pra vencer qualquer batalha’, que é mais ou menos o que a gente está passando hoje em dia, né?

Introdução da música “Comportamento Geral”, de fundo

Marcelo Abud:
Pedro Henrique Pinheiro acrescenta a essa lista as músicas “E vamos à luta”, “Sangrando” e “Piada Infeliz”. Na opinião do jornalista, essas e outras composições de Gonzaguinha trazem questões importantes para que se entenda a sociedade em que vivemos.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

 

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