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Em 19 de janeiro, completam-se 40 anos da morte de uma das maiores cantoras do Brasil: Elis Regina. Intérprete de clássicos, ela emprestou a voz a várias canções que retratavam o Brasil de seu tempo e que permanecem atuais. É o caso de ‘Querelas do Brasil’, composta em 1978 por Aldir Blanc e Mauricio Tapajos Gomes, e lançada por Elis no álbum “Transversal do Tempo”. A música aponta as contradições culturais e sociais de um país diante da aproximação da reabertura política.

“Uma querela é uma desavença em consequência de ideias contrárias, de conflitos, de discussões. Continua tendo esse contraste no Brasil, a gente é esse caldeirão de possibilidades e de combinações incríveis e únicas no mundo e, ao mesmo tempo, está encalacrado”, avalia o produtor musical e filho mais velho de Elis com o músico Ronaldo Bôscoli, João Marcello Bôscoli .

elis regina querelas do brasil
Elis Regina e o filho João Marcello Bôscoli (crédito: acervo pessoal)

Na composição, Elis dá voz a mazelas vividas em um país que convivia com a propaganda ufanista do período da ditadura militar. “É uma das músicas de uma fase da carreira em que ela estava bastante engajada em questões político-sociais e também em passar uma mensagem sobre as lutas por democracia, por justiça social, por afirmação de uma identidade brasileira”, ressalta o doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP) Marcos Napolitano.

Aquarelas e querelas

Bôscoli destaca, ainda, que “Querelas do Brasil” faz alusão a “Aquarela do Brasil”, canção de Ary Barroso composta em 1939, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas. “ ‘Aquarela do Brasil’ está mostrando um quadro de um Brasil perfeito, de valorização do nosso samba, da nossa gente. ‘Querelas do Brasil’ é um outro mapa, que não aborda somente esse aspecto ufanista, mas também traz esse tom de crítica social”, atesta a doutora em história social pela USP Rafaela Lunardi, que defendeu tese sobre a história da Música Popular Brasileira no período da abertura política e é autora do livro “Em busca do Falso Brilhante”, sobre Elis Regina.

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Transcrição do Áudio

Introdução de “Aquarela do Brasil” (Ary Barroso) fica de fundo

Rafaela Lunardi:
“Aquarela do Brasil”, de 1939, de Ary Barroso, né, está mostrando um quadro de um Brasil perfeito, de valorização do nosso samba, da nossa gente; construído no período do Getúlio Vargas, durante o Estado Novo.

Introdução de “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc / Maurício Tapajós)

Rafaela Lunardi:
“Querelas do Brasil” é um outro mapa, que não aborda somente este aspecto ufanista, mas também traz este tom de crítica social.

Introdução da música “Devastador” (Marcelo Abud / Reynaldo Bessa)

Rafaela Lunardi:
Meu nome é Rafaela Lunardi, doutora e mestre em História Social pela Universidade de São Paulo e a minha tese de doutorado é relativa à história da MPB no período da abertura política brasileira.

João Marcello Bôscoli:
Lembrando que uma querela é uma desavença em consequência de ideias contrárias, de conflitos, de discussões; continua tendo este contraste no Brasil, a gente é esse caldeirão de possibilidades e de combinações incríveis e únicas no mundo e, ao mesmo tempo, a gente está encalacrado numa situação que várias vezes eu não entendo como é que a gente chegou aqui.
Eu sou João Marcello Bôscoli, eu sou produtor musical.

Marcos Napolitano:
“Querelas do Brasil”, composta por Maurício Tapajós e Aldir Blanc, dois grandes compositores de MPB, é uma das músicas de uma fase da carreira de Elis Regina que ela estava bastante engajada em questões político-sociais e, também, em passar uma mensagem sobre as lutas por democracia, por justiça social, por afirmação de uma identidade brasileira.
Eu sou Marcos Napolitano, professor titular de História do Brasil Independente do Departamento de História da Universidade de São Paulo, doutor em História Social, também pela USP.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Introdução da música “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc / Maurício Tapajós)

Marcelo Abud:
Lançada pela primeira vez no LP “Transversal do Tempo”, em 1978, “Querelas do Brasil” aborda questões políticas, sociais e culturais do país.

Marcos Napolitano:
Basicamente, “Querelas do Brasil” é uma sátira à desnacionalização da cultura brasileira, que retoma um pouco aquelas imagens clássicas dos dois brasis – um Brasil negando o outro. E aí, claramente a letra, assim como a performance e a interpretação da Elis, enfatizam uma espécie de pedido de socorro do Brasil popular para o Brasil das elites. E ao mesmo tempo também funciona como denúncia desse Brasil “estrangeirado” das elites, que estaria sufocando o Brasil popular, o Brasil autêntico. Ela retoma essa pauta que já vinha desde o Modernismo de “abrasileirar” o Brasil.

Música: “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc / Maurício Tapajós)
Jereba, saci, caandrades, cunhãs, ariranha, aranha
Sertões, guimarães, bachianas, águas
Imarionaíma, ariraribóia
Na aura das mãos de jobim-açu
Uô, uô, uô

Marcelo Abud:
Rafaela Lunardi se aproxima da obra de Elis a partir da dissertação de mestrado, que resulta no livro “Em Busca do Falso Brilhante”. A pesquisadora ressalta a diversidade trazida na música.

Rafaela Lunardi:
Além de apresentar essa riqueza da nossa fauna e da nossa flora, está também trazendo aspectos de uma diversidade cultural, seja tanto do ponto de vista artístico – que ela apresenta “Os Sertões”, de Euclydes da Cunha, ela faz menção a Guimarães Rosa, ao Jobim, que até ganhou o codinome “jobim-açu”. E tenta fazer um mapa mais amplo desse Brasil, mencionando Florianópolis, Espírito Santo, bairros populares e de classe média do Rio de Janeiro.

Marcelo Abud:
João Marcello Bôscoli analisa como o arranjo da música reproduz a ideia da letra.

João Marcello Bôscoli:
É matemático. (cantarolando) Pa-pa-pam, pa-pa-pam: você está numa ascendente. (cantarolando) Pe-pe-pom, Pe-pe-pom: é o contrário. Uma está emergindo, a outra está afundando (ri). Isso é uma sacada maravilhosa de arranjo, feito de propósito, é um contraponto disso, né? E descendente também ligado à letra, né? “Querelas do Brasil” e “Aquarela do Brasil”! A grande sacada, entre outras, desse arranjo, é fazer com uma “intro” musical o que o Aldir Blanc fez com a letra. É muito potente, é irônico, é debochado, é duro, né?

Música: Introdução de “Querelas do Brasil”
O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil

Marcos Napolitano:
A interpretação da Elis valoriza a própria ironia que a canção traz; os arranjos – direção musical – de Cesar Camargo Mariano também dão uma elegância toda especial e uma universalidade pra essa música, evitando que ela fosse um mero panfleto nacionalista e superficial. Na verdade é uma canção que busca dizer para o Brasil do andar de cima que existe não apenas o Brasil do andar de baixo, mas que esse Brasil quer ser integrado num projeto nacional e moderno.

Música: “Querelas do Brasil”
Cascadura, água santa, acari, olerê
Ipanema e Nova Iguaçu, olará
Do Brasil, S.O.S. ao Brasil
Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

João Marcello Bôscoli:
Um retrato preciso do Brasil, um pouco dolorido, mas eternamente novo: “o Brasil não conhece o Brasil”, né? Você pode cantar isso com sotaque, ou seja, “O Brazil não conhece o Brasil”: os colonizadores, os opressores não conhecem a gente. Mas quando canta “o Brasil não conhece o Brasil” sem o sotaque é falando a gente não conhece a gente, aí desfila uma série de termos, de terminologias, de coisas do Brasil que a gente no dia a dia acaba não observando, que estão aí, que são gigantes, né?

Rafaela Lunardi:
Outra coisa que a música faz é uma denúncia também à questão da própria natureza, né, acho que a gente não pode perder de vista que “Querelas do Brasil”, aliás a grande tônica dela é a coisa dessas palavras em Tupi, mencionando animais e plantas típicos do nosso ecossistema, né?

Música: “Querelas do Brasil”
Tapir, jabuti
Liana, alamanda, ali, alaúde
Piau, ururau, aki, ataúde

Rafaela Lunardi:
E com relação à crítica do ponto de vista mais social, efetivamente, dessas mazelas do nosso cotidiano, nós temos as menções que a música faz, por exemplo, ao INAMPS, que era o Instituto Nacional de Assistência Média da Previdência Social, que, por meio da compreensão da música, leva o brasileiro ao IML, ao Instituto Médico Legal. Ou seja, demonstrando aí a sua insuficiência.

João Marcello Bôscoli:
Eu acho que essa música permanece tristemente atual, por questões que ela toca, como o jeito que o Brasil trata com a sua natureza: a fauna, a flora, os rios, os mares e tudo o mais, não apenas isso, mas a sua natureza, né, esse conflito, essa coisa “ciclotínica” de alguns momentos se achar o máximo e em outros momentos não se achar muita coisa. O estabelecimento dessas relações de força, né, entre os colonizadores e os colonizados, que há ecos dessas relações até hoje. O desconhecimento que sua própria população tem sobre sua grandeza, sua complexidade. Se você pegar os números todos: quanto tinha de mata atlântica quando a Elis lançou essa música e quanto tem de mata atlântica hoje? Quantas espécies ameaçadas tinha naquela época e quanto tem hoje? Quanto de queimada tinha naquela época e quanto que tem hoje? Quantos povos indígenas ameaçados tinha e quantos têm hoje?
Ela permanece uma canção jornalística, uma canção que trata de algo que não só continua na ordem do dia, como está na ordem do dia em “bold, né? Essas questões todas nunca estiveram tão presentes, como estão hoje.

Música: Introdução de “Devastador” (Marcelo Abud / Reynaldo Bessa)

Marcelo Abud:
Eternizada na voz de Elis, “Querelas do Brasil” traz tanto as belezas quanto as mazelas de um país que, nos dias de hoje, ainda parece não conhecer sua força e identidade.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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