Conteúdo curricular do ensino médio, o trovadorismo foi um movimento cultural e literário caracterizado pela poesia associada à música e pela presença da temática do amor cortês.

Nas aulas de literatura, o ensino do trovadorismo pode ser realizado com a obra do cantor e compositor Chico Buarque, como sugere a professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Luciana Calado Deplagne. Ela é autora do livro “Chico Buarque: um moderno trovador”.

“Um exercício é trabalhar as modalidades da lírica trovadoresca utilizando um repertório do cancioneiro da MPB e da poesia brasileira para aproximar os alunos do universo medieval, tão distante no tempo e no espaço”, justifica.

A seguir, a pesquisadora lista as principais características das cantigas de amor e de amigo que se fazem presentes em músicas específicas da obra de Buarque e como trabalhá-las junto à classe.

O que é o trovadorismo?

Luciana Calado Deplagne: Ele foi um movimento cultural e literário que surgiu na Idade Média central, entre fins do século XI e início do século XIV, na região sul da França, em língua provençal (occitano) e se expandiu por Itália, Alemanha, Portugal e Espanha, originando as primeiras manifestações literárias em língua vernácula (português, italiano, galego, provençal etc.).

O termo deriva de ‘trobar’, que em provençal significa compor versos, criar, inventar e encontrar. Os trovadores eram poetas e poetisas letrados que compunham letra e melodia com temáticas sobre o amor e natureza. Essas produções líricas eram musicadas, cantadas e acompanhadas por instrumentos musicais como alaúde, gaitas, harpas e pandeiros. Participavam também da performance artística os jograis e as jogralescas, artistas de menor prestígio em relação aos trovadores.

Quais as características do trovadorismo?

Deplagne: Ser uma produção poética associada à música e à presença de uma filosofia do amor, o amor cortês, desenvolvida no século XII. Ela remete à ideia de um amor purificado e verdadeiro, sem finalidade carnal ou de reprodução, mas que poderia ser sensual e sagrado, idealizado e concreto. Em contexto no qual os casamentos eram acordos e imposição, não por amor, a manifestação do amor cortês no trovadorismo se dá por relações extraconjugais, como os pares Tristão e Isolda, Lancelote e Rainha Genebra.

Havia uma importância feminina. No século XII, muitas mulheres se destacaram como figuras de autoridade científica, religiosa, filosófica, literária, como a filósofa Heloísa de Argenteuil, a abadessa e cientista Hildegarde de Bingen, a rainha e protetora dos trovadores Leonor de Aquitânia, a escritora Marie de France e várias trovadoras.

Quais os gêneros literários da lírica trovadoresca?

Deplagne: Em galego português, são três principais: cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer, cuja estrutura formal se encontra catalogada no tratado anônimo Arte de Trovar, disponível no Cancioneiro da Biblioteca Nacional.

O que o professor pode destacar sobre as cantigas de amor?

Deplagne: Nelas, o eu lírico expressa seu sofrimento amoroso (coita), provocado pelo amor a uma dama inalcançável – designada senhor –, reproduzindo uma relação de vassalagem entre o trovador e essa mulher amada, como vemos na cantiga de Dom Dinis (V 89): “Em gram coita, senhor, /que peior que mort’é,/ vivo, per bõa fé / e polo voss’amor”.

Elas apresentam um ideal de beleza feminina – jovem, delgada, virtuosa – e ideal cavaleiresco do eu lírico – valente, com muitas proezas e detentor de um amor puro. Em poemas de trovadoras, o eu lírico se declara da mesma forma e se queixa do objeto amado, geralmente, desleal.

O que pode ser destacado sobre as cantigas de amigo?

Deplagne: Derivam de uma tradição de cânticos femininos ancestrais, relacionados a rituais de iniciação e fertilidade. O eu lírico e contexto são femininos, apresentando diálogos de uma jovem solteira com a mãe, amigas, irmãs e natureza. Destaca-se a sedução da jovem, a expressão direta de seus desejos, sentimentos de saudade e de queixa pela ausência e abandono do seu ‘amigo’.

Esses cantos de mulher eram praticados em várias regiões do mundo, segundo estudos de Ria Lemaire com diferenças entre si. Nas cantigas provençais e italianas, o subgênero ‘cantigas de malmaridadas’ crítica a violência doméstica, como no soneto da trovadora italiana Compiuta Donzela ‘Na estação em que o mundo fronda e flora’.

Nas galego-portuguesas, há uma subdivisão de acordo com temáticas, circunstâncias e locais de enunciação como: cantigas de romaria, marinhas ou barcarolas, bailias, cantigas dialogadas etc.

O que pode ser destacado sobre as canções de escárnio e maldizer?

Deplagne: São composições satíricas que retratam as relações sociais daquela sociedade hierarquizada, podendo apresentar crítica social, moral ou política de uma forma caricaturada e burlesca, assim como linguagem obscena, direta e carnavalizada. Às vezes, há paródias de cantigas de amor ou ataques a tipos sociais como abadessas, jograis, escudeiros e rico-homens, ridicularizados pela avareza e arrogância. Muitas eram estruturadas em tensão poética, gênero dialogado que se aproxima aos desafios e pelejas dos poetas nordestinos.

Ao ensinar o trovadorismo, quais músicas de Chico Buarque podem ser exploradas?

Deplagne: Algumas canções que analisei dialogam tanto pelas temáticas quanto por aspectos formais da retórica trovadoresca. Para cantigas de amigo, cito: ‘Atrás da porta’, ‘Olhos nos olhos’,  ‘Sem açúcar’, ‘O meu amor’ e ‘A mais bonita’. Em Barcarola ou Marinha, há ‘Madalena foi pro mar’ e ‘Morena dos olhos d´água’. Em tensão de amigo – debate poético que alterna eu lírico feminino e masculino –, temos ‘A mulher de cada porto’. Já em cantiga de amor, há ‘Tanta saudade’; ‘A Rita’; ‘Olê, Olá’; ‘Um chorinho’ e ‘Será que Cristina volta?’.

Nessas composições, as marcas trovadorescas estão presentes pelo eu lírico feminino e queixas pela ausência e desprezo do amigo; pela expressão dos desejos femininos; pela referência a elementos da poética medieval como ondas, mar e olhos; pela expressão do sofrimento amoroso, a ‘coita’ e a vassalagem; pela presença de elementos formais, como o papalelismo e a fiinda – estrofe de poucos versos no final da cantiga, enviada a alguém –; pela relação entre o amor e criação poética.

Leo Aversa Chico Buarque Trovadorismo
(Crédito: Leo Aversa)

Quais atividades podem ser propostas?

Deplagne: Muitas composições de Chico Buarque podem ser analisadas em aula, em diálogo com a lírica trovadoresca medieval, atentando para os contextos específicos de cada poética. Um exercício é trabalhar as modalidades da lírica trovadoresca utilizando um repertório do cancioneiro da MPB e da poesia brasileira para aproximar os alunos do universo medieval, tão distante no tempo e no espaço.

Sugiro o conceito de neotrovadorismo, que é a recriação do universo poético medieval com espírito do século XX. Segundo Maria do Amparo Maleval, muitos neomedievalistas brasileiros participaram do movimento modernista, como Mario de Andrade, Manuel Bandeira e Cecília Meireles. Há também Hilda Hilst, Stella Leonardos, João Cabral de Melo Neto e composições da MPB de Djavan, Caetano Veloso, Gonzaginha e Ari Barroso.

 Além da lírica trovadoresca, é possível expandir o diálogo com outros gêneros medievais?

Deplagne: Sim, como o romanceiro ibérico, o Roman de Renart e a poesia satírica dos goliardos. Chico Buarque tem composições que apresentam traços para além do trovadorismo. “Bom conselho” é elaborada a partir da inversão semântica de provérbios e tem aspecto transgressor e cômico, próprio à carnavalização. A sátira está na recusa da ideologia dos provérbios, apresentando-se como uma paródia social aos conceitos preestabelecidos pela sociedade repressora da época (1972), durante a ditadura militar.

O medievalismo se faz presente em canções de Chico Buarque e outros nomes da poesia brasileira por meio da literatura popular. A canção ‘Verdadeira embolada’  explora aspectos formais como os versos heptassílabos e rimas assonantes típicos dos romances medievais, a dupla enunciação lírica e narrativa e teor político.

Quais materiais você sugere como apoio?

Deplagne: O site do projeto Littera da Universidade Nova de Lisboa, que disponibiliza todas as cantigas trovadorescas galego-portuguesas, as definições dos gêneros literários, dados sobre os trovadores e releituras das cantigas trovadorescas musicadas por grupos da atualidade.

Veja mais:

Estudar em casa: entenda o trovadorismo

Plano de aula – Valsinha (Chico Buarque e Vinícius de Moraes)

21 escritores de língua portuguesa para apresentar aos alunos

Racismo nos clássicos da literatura brasileira: como abordar o tema com os alunos?

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