“Cancelar” é um jargão da internet para retaliar uma empresa ou pessoa pública por conta de um comportamento ou fala considerados socialmente inadequados.

“Essa é uma prática social fortalecida pelo uso das mídias e que é violenta, uma vez que não permite direito de resposta ou faz com que esse não tenha efeito. Ela mobiliza rapidamente milhares de pessoas para um ataque rápido, sem reflexão e sem preocupação com as consequências para quem é alvo, que podem incluir adoecimento mental e suicídio”, esclarece a mestra profissional em docência para a educação básica pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) Elisandra Pereira.

“Chama-se ‘cultura’ justamente por ser uma prática já intrínseca na sociedade”, acrescenta a docente da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio Professora (CEEFMTI) Maura Abaurre, em Vila Velha (ES), Maria Eduarda Pecly.

A cultura do cancelamento, porém, também atinge as relações entre os alunos na escola e impede que temas importantes, como o racismo estrutural, sejam discutidos de forma aberta. Essa problemática foi notada por Pereira com alunos do ensino médio de um instituto federal no interior de São Paulo.

“O racismo é um tópico desconfortável de falar em aula e cria um clima de certa desconfiança. Havia um medo do cancelamento por parte dos colegas: os alunos negros não falavam sobre o assunto com receio de serem vistos como se estivessem reclamando e, os brancos, por medo de serem tachados como racistas. Assim, o debate ficava superficial e uma mudança não era efetivada”, analisa.

Alternativa à roda de conversa

Durante a pesquisa, Pereira teve como primeiro passo discutir com os alunos o que era a cultura do cancelamento e as suas consequências, medida que considera importante para sensibilizar os estudantes.

Já na hora de avançar o debate sobre o racismo, ela percebeu que a metodologia de roda de conversa era ineficiente.
“Os alunos silenciavam e era frustrante, porque os conhecia e sabia que eles possuem opiniões e poderiam contribuir. A maioria da classe era composta por brancos, e isso criava uma tensão e uma dificuldade de compartilhar experiências e opiniões”, relembra.

Segundo a professora, os alunos brancos foram os primeiros a falar. “Destacavam estereótipos de como a pessoa negra era boa em esportes ou música, mas nada sobre valorização da ancestralidade africana e afro-brasileira e das contribuições dessas culturas. Eu questionava: se tudo era tão bom assim, porque o racismo ainda é um fato?”, relembra.

Foi necessário um tempo para que os alunos negros se sentissem seguros e confortáveis para compartilhar suas experiências de dor.

“Houve inúmeros depoimentos sobre serem abordados e sofrerem violência policial mesmo sendo menores e usando o uniforme da escola. Isso já mostrava uma realidade completamente diferente daquela retratada pelos estudantes brancos”, compara.

A solução para a docente foi abrir mão das rodas de debate e investir em atividades lúdicas – como um RPG online –, nas quais eram apresentados fatos e personalidades das histórias africana e afro-brasileira. Isso facilitou o diálogo e estimulou a escuta.

“Com base no jogo, eles começaram a conversar e, de forma independente, faziam paralelos com a realidade do racismo estrutural. Por exemplo, fizeram uma conexão entre o material visto no caso de um engenheiro que havia sido assassinado pela polícia militar por ser negro”, opina.

A experiência de Pereira foi relatada na dissertação “Educação profissional e racismo: descobrindo a influência da cultura do cancelamento através da pedagogia histórico-crítica” (2022).

Argumentação e direitos humanos

Na CEEFMTI Professora Maura Abaurre, em Vila Velha, a necessidade de discutir a cultura do cancelamento se deu pela mobilização dos alunos contra participantes de um reality show assistido pela maioria da comunidade escolar.
“Discutir esse tipo de prática com os alunos permite, justamente, que o cancelamento deixe de ser uma ‘cultura’, uma vez que adolescentes podem ser potenciais transformadores de uma nova geração”, enfatiza Pecly.

Para isso, os professores da área de linguagens resolveram unir forças e criar um projeto interdisciplinar chamado “Cultura do cancelamento na internet: viralizando o bom senso”.

Em Língua Portuguesa, as aulas foram dedicadas a apresentar aos alunos o conceito e trabalhar a argumentação.
“O objetivo era saber expressar um ponto de vista, sem ofender, abrindo espaço para a discussão com diferentes tipos de ideias. Além disso, aprender a explorar a defesa de um ponto de vista com argumentos sólidos, coerentes e que não ferissem os direitos humanos”, justifica.

Na sequência, o tema do cancelamento foi trabalhado a partir da criação do gênero textual meme.

“Foram identificadas exposições virais da internet e propus a confecção de novos ‘memes’ que partissem delas, mas que agora compartilhassem a ideia de solidariedade e de empatia. Foi também uma oportunidade de usar o tema para trabalhar para habilidades socioemocionais”, afirma a professora.
Na área de Educação Física, a discussão partiu para bullying e cancelamento no universo do esporte. “Ao final, o grande desafio foi desmistificar para os alunos que não existe humor e satisfação quando se cancela alguém”, reflete.
Para escolas que desejam criar projetos similares, Pecly indica um enfoque especial nas consequências da cultura do cancelamento, com a participação de profissionais especialistas, como psicólogos, psiquiatras e sociólogos.

Veja mais:

O que considerar antes de cancelar uma pessoa ou empresa nas redes sociais

Como lidar com casos de racismo entre alunos?

Lugar de fala na escola: professores brancos podem tratar de racismo estrutural?

7 planos de aula para debater o racismo e conhecer pensadores negros

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