Juliana* tem nove anos e é uma aluna negra do ensino fundamental em São Paulo (SP). Ela já havia relatado aos pais ser isolada pelos colegas na escola. “Dizia que ninguém brincava com ela e que permanecia sozinha no intervalo, lendo”, revela a tia. Em uma atividade, a menina contou aos colegas que nascera no período noturno. “Eles associaram isso à sua negritude e passaram a debochar”, conta a familiar. A aluna desabafou com os pais, que acionaram a escola. Porém, encontraram educadores despreparados para lidar com o racismo em ambiente escolar.
“Sendo o racismo estrutural, ele se manifestará também nesse espaço, mas que tende a negá-lo ou subestimá-lo. A escola diz ‘não aceitar nenhuma forma de discriminação’, que ‘somos todos iguais’ mas, na prática, nada faz de concreto”’, analisa a doutora em educação e técnica do Colégio Pedro II (RJ) Alessandra Pio Silva. Para pensar em formas de agir em situações similares à de Juliana, convidamos três profissionais para compartilharem suas impressões. Foram sugeridas possíveis ações com os quatro sujeitos do conflito: aluno agressor, vítima e seus respectivos responsáveis.
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Responsáveis pelo agressor
Parte-se do princípio que a criança agressora pode ter reproduzido comportamento visto em família. “Discriminação racial ocorre já na creche”, observa a pedagoga e mestre em educação Regina Inês Villas Bôas Estima. Assim, é comum os responsáveis chegarem atacando e se defendendo. “Já vimos pai alegar se tratar de ‘brincadeira’ e ameaçar processo por injuria”, conta Silva. “Se os pais forem realmente racistas, não admitirão que a criança negra seja considerada com o mesmo respeito e afeto que seu filho”, acrescenta.
Escale para a conversa um profissional da gestão ou coordenação pedagógica que seja paciente e bom de diálogo. “Evite um conservador ou reativo a ataques, assim como educadores negros no espaço”, recomenda Silva. “Isso pode incitar raiva nos pais e despertar lembranças ruins no profissional, já que dor do racismo é coletiva”. Vale, ainda, chamar uma psicóloga. “Simbolicamente, demarca que há um problema familiar”, orienta Silva. Serão necessários alguns encontros, sendo o último com todos e destinado para pensar uma punição educativa para o agressor.
Responsáveis pela vítima
Os pais da criança vítima de racismo podem ter memórias de situações semelhantes vividas quando estudantes. Dessa forma, assistir a um ente querido passando pelo mesmo pode despertar tristeza e raiva. “Isso exige sensibilidade da equipe”, afirma Silva. Os responsáveis podem evitar o assunto com receio do aluno sofrer retaliações. “A postura ‘não vamos falar sobre isso para não incomodar’ é comum. Tanto que crianças sofrem até o limite antes de denunciar”, acrescenta.
Vítima
Professor ou coordenador pedagógico não deve minimizar o ato ou fingir que a escola tem uma postura contra o racismo quando, na prática, isso não acontece. “Não diga coisas como ‘somos todos iguais’, ‘a escola não aceita nenhuma forma de discriminação’, ‘você é linda’, ‘o colega estava brincando’, etc.”, diz Silva. “Admita a situação e nomeie o racismo. Isso ajuda no acolhimento”.
Agressor
“Explique o que é o racismo, que é crime fora da escola, mas, como aquele espaço é educativo, será pensada uma responsabilização justa pelo seu ato”, sugere Silva. Situações em que ele for conscientemente racista não serão resolvidas com uma única conversa. “Já ouvimos de alunos: ‘não conheço preto que merece meu respeito’, em referência aos trabalhadores em posições de serviço da escola, como na limpeza”, relata Silva. A punição será pensada coletivamente, em uma reunião de mediação com os quatro envolvidos. “Será essa administrativa, pedir desculpas na frente da turma?”, questiona Silva.
Como se preparar para o racismo na escola:
– Projeto Político Pedagógico (PPP): o documento, construído coletivamente com a comunidade escolar, deve prever como agir em situações de racismo.
– Treinar corpo docente e funcionários: “Agir frente ao racismo é papel de toda escola, não apenas do coordenador e professor”, destaca a diretora da rede municipal de Campinas (SP) Maria Fernanda Luiz Paulo. “Brancos não entendem que possuem raça. Consideram-se ‘neutros’ e veem apenas o negro como racializado. Isso prejudica para entender, identificar e agir sobre o racismo escolar”, explica Silva. “É comum o professor ‘brincalhão’ que chama estudantes de ‘negão’ e ‘minha morena’. Ou quem não entende colorismo e racismo de negros claros contra retintos”, acrescenta.
– Currículo: Mais do que na conversa, combate-se o racismo trazendo exemplos de pessoas negras em lugares de poder, sem precisar colocar a questão racial em pauta. “Na aula de química, trago o vídeo de um chefe de laboratório negro discutindo um assunto do conteúdo” ilustra Silva. “Cabe ao coordenador pedagógico articular ações de enfrentamento, cuja efetividade não será imediata”, adverte Paulo.
– Aproximar-se da comunidade: “Chamar os responsáveis à escola apenas na hora da reunião de pais ou de comunicar indisciplina do aluno é ruim. Já conhecer e envolver os familiares na escola melhora a abertura ao lidar com um comportamento racista”, aponta Estima.
* Os nomes da aluna e familiares foram suprimidos a pedido dos mesmos
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