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Os negros, grupo que reúne pretos e pardos, representam a maior parte da população do Brasil. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,1% dos habitantes do país se declaram negros. No entanto, poucos ascendem socialmente e, na televisão, ainda há o domínio de pessoas brancas. Diante desse cenário, a 21ª edição Big Brother Brasil (BBB) apostou no maior número de integrantes de pele negra de sua história. Com a atenção voltada para essa parcela de participantes, alguns temas têm surgido a partir de conversas na casa, como o colorismo e a fabulação.

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Para explicar o significado desses conceitos, o Instituto Claro conversa, neste podcast, com o doutor pela Universidade de São Paulo, professor do curso de jornalismo da Universidade Estadual Paulista e ativista pela questão da diversidade no meio acadêmico Juarez Tadeu de Paula Xavier. “Há um ponto crucial, que é a chegada da família real no Brasil, em 1808. Há ali a constituição de um projeto de Estado no sentido de apagar essa presença negra, em especial a partir de 1888, com a abolição”, contextualiza o professor.

Colorismo em debate

Em um dos episódios do BBB, o humorista Nego Di e a rapper Karol Conká repudiaram uma fala do economista Gilberto Nogueira. Em festa no início de fevereiro, Gil se afirmou negro e foi ironizado pelos colegas, pelo fato de ter pele mais clara que os outros competidores. Xavier explica que o episódio demonstra, na prática, um conceito que teve origem nos Estados Unidos, ainda nos anos 1980, o colorismo. “Em sociedades racializadas, quanto mais clara é a cor da pele da pessoa, mais mobilidade ela tem, mais aceitação ela tem. Ela não supera as marcas do racismo, mas há de fato a tendência de se associar fortemente pessoas negras de pele mais retinta com qualquer aspecto negativo”.

A postura de Conká em episódios envolvendo outros integrantes negros na casa, entre eles o ator e slammer Lucas Penteado, está ligada, segundo o entrevistado, a uma tese apresentada pelo saudoso geógrafo e pensador, Milton Santos. “A pessoa constrói uma fabulação a partir de uma suposta ascensão econômica e social e acredita piamente que está sendo considerada dentro de um outro contexto. Rapidamente este tipo de ilusão acaba se diluindo, em qualquer enfrentamento racial”, explica. Xavier cita ainda o patrono da educação brasileira para concluir: “Fazendo uma alusão a Paulo Freire, quando a educação não é libertária, o sonho do oprimido é ser opressor”.

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Transcrição do Áudio

Música Checkmate, de Nathan Moore, fica de fundo
Juarez Xavier:
Certa vez uma pessoa disse ‘nossa, Juarez, você conquistou tantas coisas, nem parece negro’. Ninguém fala ‘nossa! Você é tão inteligente que nem parece branca’. Era um pouco aquela ideia preconceituosa e racista que tinha no passado, que você era um ‘negro de alma branca’. Essas sutilezas que você vai ver no Brasil expressa a brutalidade do racismo.
Juarez Tadeu de Paula Xavier, professor e doutor pela USP, professor do curso de jornalismo da Unesp e desenvolvo na universidade uma política com foco na questão da diversidade.

Vinheta: Instituto Claro – Cidadania

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
Gil Nogueira é criticado ao se identificar como negro. Karol Conká assume ar de superioridade diante de integrantes da casa. Essas foram algumas cenas acompanhadas na edição atual do Big Brother Brasil. Situações assim também são vistas diariamente na novela da vida real.
Com a repercussão da conversa entre os integrantes do reality, o colorismo entrou em pauta.

Juarez Xavier:
Há um ponto crucial, que é a chegada da família real no Brasil em 1808. Há ali a constituição de um projeto de Estado no sentido de apagar essa presença negra, em especial a partir de 1888, com a abolição. Então do ponto de vista da coerção todos os mecanismos eles estavam voltados pra substituição da população negra no Brasil. O objetivo era branquear a população; eliminar a presença cultural negra na sociedade brasileira, projeto que vai ser implementado a partir de 1870 até 1930, nessa perspectiva de tentar apagar a digital negra da carne da sociedade brasileira, ou seja, a presença negra na sociedade e da alma da sociedade brasileira, ou seja, a presença cultural de negros e negras na sociedade.

Marcelo Abud:
Xavier resume o colorismo no fato de que quanto mais escura for a pele da pessoa, no Brasil, menos oportunidade ela tem.

Juarez Xavier:
Em sociedades racializadas, quanto mais clara é a cor da pele da pessoa mais mobilidade ela tem, mais aceitação ela tem na área social; mais possibilidades de ter espaços abertos pra que ela possa frequentar; de ingresso no mercado de trabalho; de mobilização vertical numa atividade profissional, escolar ou social. Ela não supera as marcas do racismo, mas ela tem mais mobilidade do que as pessoas de pele mais escura. Então acho que tem de fato um elemento de associar fortemente pessoas negras de pele mais retinta com qualquer mecanismo negativo. E tende-se a se valorizar em cunho muito mais depreciativo o aspecto dessas mulheres que são miscigenadas e têm essas características que nós poderemos chamar hoje – a partir dessas classificações – de parda, né?

Música: “De Bob Dylan a Bob Marley” (Gilberto Gil)
“Bob Marley morreu
Porque além de negro era judeu
Michael Jackson ainda resiste
Porque além de branco ficou triste”
Marcelo Abud:
A participante com maior rejeição na história do Big Brother era vista, até entrar na casa, como uma artista ligada às causas dos movimentos negro e feminista. O que a teria feito ter atitudes contraditórias ao chegar lá dentro?

Juarez Xavier:
Muitos negros que ascendem perdem a consciência crítica de que pra sociedade ele continua sendo negro, ela continua sendo negra. A ascensão ela não diluí os enfrentamentos raciais, pelo contrário, tornam muito mais intensos.

Música: “Tempos Insanos” (Karol Conká), Karol Conká com WC no Beat
Nem preciso dizer que eu tô no comando (é)
Nesse barco só fica quem estiver remando (vixi)
Carta na manga já tenho os meus planos (hmm)
Eu tô deslizando em tempos insanos

Juarez Xavier:
Tem um livro maravilhoso do Frantz Fanon, “Pele Negra, Máscaras Brancas”, em que ele vai observar um fenômeno que muitos negros, para não fazerem o enfrentamento, vão usando máscaras, até que num determinado momento ele não sabe mais qual máscara que ele está usando. Isto leva a uma alienação da sua condição de negro. Então, lamentavelmente, os negros que ascendem e têm uma perspectiva alienada e num determinado momento é lembrado pra ele, né, pra ela, que, apesar da sua condição, a sociedade a vê como uma negra, a sociedade o vê como um negro. Parece-me que foi essa a lição que a Karol Conká aprendeu em relação a esse processo. Depois eu vi algumas entrevistas quando ela saiu da casa, né, com o maior índice de rejeição, as falas dela, de uma menina, que num determinado momento acreditou numa suposta democracia racial brasileira, mas que no momento do enfrentamento, do embate, do conflito, ela foi vista pelo que ela é de fato: uma mulher negra.

Marcelo Abud:
Juarez Xavier recorre ainda a pensamentos de Paulo Freire e Milton Santos.

Juarez Xavier:
Existe aquilo que o professor Milton Santos chamava de fabulação: pessoas que constroem uma fabulação a partir de uma suposta ascensão econômica e social. E acredita, piamente, que está sendo considerada dentro de um outro contexto, rapidamente esse tipo de ilusão acaba se diluindo em qualquer enfrentamento racial. Fazendo uma alusão a Paulo Freire, quando a educação não é libertária, o sonho do oprimido é ser opressor. Se você for pegar, por exemplo, alguns jogadores de futebol que ascenderam socialmente no Brasil; cantores que casam com mulheres brancas, que passam a ter uma postura social bastante negativa em relação à população negra – dá pra você observar esse fenômeno.

Marcelo Abud:
O professor ressalta que o problema não está na ascensão da pessoa negra, mas em como e em que condições isso acontece.

Juarez Xavier:
Nós temos o Lázaro Ramos que ascendeu também sua consciência crítica como negro; você tem o Emicida, que também avançou nessa perspectiva e nessa direção. Depende muito de como esse negro que ascende está vinculado ao compromisso com o grupo social ao qual ele pertence. Eu pego dois exemplos que nós temos no Brasil que eu acho importantes: o jogador Pelé, Edison Arantes do Nascimento, construiu toda uma carreira profissional, uma carreira histórica, mas todas as vezes que há algum problema em relação ao Pelé, parte dessa população racista brasileira, lembra que ele é negro. E duramente o critica na condição de ser negro, por ser negro; e você pega a Elza Soares, que, num determinado momento, compreendeu a magnitude das questões étnicas raciais e, de uma forma altiva e uma forma crítica, uma forma inventiva, de uma forma inteligente – tem se posicionado favoravelmente na defesa dos direitos da população negra.

Negão Negra (Flávio Renegado / Gabriel Moura), com Elza Soares
Sempre foi luta
Sempre foi porrada
Contra o racismo estrutural
Barra pesada

Juarez Xavier:
Não é possível numa sociedade em que o racismo é sistêmico que o negro não sofra racismo. Ele pode não perceber ou por uma questão de autodefesa, ou por uma questão de autoalienação imposta, ou por uma questão de preferir não observar. Mas é impossível numa sociedade estruturada, a partir do racismo, que você não tenha a observação do racismo como sendo presente fundamental.

Música de Reynaldo Bessa, instrumental, de fundo

Marcelo Abud:
O colorismo demonstra que a sociedade brasileira ainda precisa lutar muito para que se eliminem discriminações por causa do tom de pele de uma pessoa.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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