No Festival Cabelos Lindos, do Colégio Salvador (SE), alunos e alunas participaram de atividades para aprenderem a valorizar seus cabelos crespos (créditos: divulgação).

O racismo expresso pela recriminação ao cabelo do aluno negro não é uma novidade no ambiente escolar. E não raro o agressor é o próprio educador. A jornalista Verônica Lima estava no ensino fundamental quando foi abordada por um professor de ciências. “Cresci ouvindo o clássico: nega do cabelo duro. Por isso, nunca soltava meus cabelos. Quando fui com eles soltos, o professor me questionou, na frente de toda a classe, se eu tinha vindo vestida de Valderrama (jogador de futebol colombiano). Nunca mais: só fui soltar os cabelos em público na faculdade”, revela.

Experiência parecida teve a atriz Mariana Miguel. Única aluna negra da escola, Mariana era impedida de participar de uma brincadeira de roda pelas colegas porque seu cabelo “não possuía movimento”. “Minha mãe passou a amarrar um lenço na minha cabeça para eu poder brincar. Até que, na sétima série, coloquei tranças e fiquei contente comigo. Contudo, a professora me chamava a atenção porque, segundo ela, eu mexia demais nas minhas tranças. Isso a incomodava’, relembra.
Tanto para a doutoranda em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB), Kelly Quirino, quanto para a diretora da rede municipal de São Paulo, Jane Reolo, o racismo reproduzido na escola está vinculado a difusão de uma única estética pela mídia: a branca, de origem europeia.
Recentemente, a modelo Elisete Lopes registrou um boletim de ocorrência contra a diretora de uma escola da rede estadual de Minas Gerais. Segundo o relato da sua filha de dez anos, a profissional amarrou seus cabelos à força. Anteriormente, uma professora havia dito que a menina “não penteava o cabelo”. “Nós que temos cabelo crespo não penteamos todos os dias porque eles quebram. Falta formação, falta humanidade e principalmente educar essas crianças que ter cabelos crespos ou um nariz largo é bonito”, reforça. Em nota oficial, a Secretaria de Educação disse que “todas as denúncias estão sendo devidamente apuradas pela equipe de inspeção”.
Jane Reolo aponta que a recriminação ao cabelo crespo tem ainda um caráter higienista. “Como diretora, já presenciei professores que pediam apenas para a criança negra prender o cabelo, sob a justificativa de que era mais higiênico. Isso é cruel porque impacta a construção da identidade da criança negra. Quando o educador diz que esse cabelo precisa ser preso, ele está reforçando:  sua estética é feia e anti-higiênica. Há uma questão racista colocada”, adverte.

Visibilidade e valorização

Casos de racismo envolvendo xingamentos e chacotas contra os cabelos de alunos negros  eram uma constante também no Colégio do Salvador, em Aracaju (SE). Os educadores se frustravam porque as abordagens convencionais – como o diálogo sobre a diversidade – não estavam surtindo efeito. Foi quando surgiu a ideia de criar uma iniciativa específica: o Festival Cabelos Lindos.
Sob o lema “Meu cabelo não é moda, é identidade. Solte o cabelo e prenda o preconceito”, o festival discutiu a diversidade estética e padrões de beleza durante um dia.  Na aula de Língua Portuguesa, os alunos foram estimulados a escrever poemas sobre o tema ou dar o relato de situações de preconceito. A escola recebeu ainda cabeleireiros que orientaram sobre como cuidar dos fios crespos, elaborar penteados rápidos e fazer a transição do cabelo alisado para o natural.  Ao final, uma passarela foi montada para todos os estudantes desfilarem.
“Os alunos aplaudiram e os colegas incentivavam aqueles que estavam desfilando. Para nós, educadores, foi emocionante ver alguns alunos que identificavam seu cabelo com uma estética negativa podendo se olhar de outro jeito”, comemora a coordenadora da educação infantil, Nair Almeida. “Ao final, eles escreveram repostas para a pergunta: por que eu amo o meu cabelo? As frases foram postadas no Instagram da escola”, assinala.
“Ainda hoje não há representação dos 53% da população negra brasileira na TV e espaços publicitários, o que reforça a estética eurocêntrica”, aponta Kelly Quirino. “A ação da Escola Salvador é positiva por desconstruir o estereótipo de que cabelo crespo é feio, duro e ruim. Nosso cabelo tem outra estética, que provém de etnias diversas na África, ele é versátil”, aponta Quirino, que estuda a representação do negro na mídia.

Reflexão

Ainda segundo a pedagoga, combater o racismo na escola exige uma autorreflexão por parte do educador sobre o que é a estética e como a cultura influencia aquilo que classificamos como belo. Já com os alunos, o tema pode ser abordado de forma interdisciplinar. Entram em cena História, Geografia, Sociologia, entre outras. “Posso pensar: como os meus ancestrais africanos usavam o cabelo? Por que minhas tias e avós usavam o cabelo apenas preso? A raça negra é a única com cabelo crespo? Em que localização geográfica estão essas diferentes etnias?”, exemplifica.
Para o Colégio do Salvador, o resultado do Festival Cabelos Lindos no combate ao preconceito foi positivo, o que estimulou a direção a incorporar a atividade no calendário anual da escola. “Hoje, todos os nossos alunos estão vindo com seus cabelos soltos e as mães já contam que muitas meninas abandonaram o alisamento. Esperamos que isso dure para sempre”, finaliza a coordenadora de educação infantil Nair.
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