“Cancelar” é uma gíria nas redes sociais para o boicote de um produto, empresa ou personalidade pública que teve opinião ou comportamento considerados moralmente inaceitáveis. “Geralmente, é direcionado às pessoas públicas e que dependem da sua reputação para renda”, resume o coordenador do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética (NEFIPE) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Filipe Campello.

Pesquisador da cultura do cancelamento, ele pondera que não se trata de algo recente: “O escracho e o linchamento público já aconteciam antes da internet”. O fenômeno virtual, porém, trouxe aspectos inéditos, sendo alguns positivos. “Permitiu o debate público de assuntos que, no passado, apenas teriam visibilidade se abordados pela mídia. Além disso, pessoas sem voz se viram com espaço para se expressarem e denunciarem crimes”, analisa o psicanalista e doutorando em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (SP), Enzo Pizzimenti.

“Antigamente, emitir uma opinião pública exigia ao cidadão escrever uma carta a um veículo de comunicação e ter a sorte de um trecho ser publicado na edição do dia seguinte. Hoje, o feedback é intenso e vem a galope”, compara a mestre em Antropologia Social e coordenadora do grupo de estudos Violências Raciais e Resistências Negras, na Universidade Federal do Ceará (UFC), Izabel Accioly. “Outro aspecto positivo é permitir a responsabilização de pessoas e empresas pelos seus atos”, complementa.

Em um contexto de ausência do estado e situações de impunidade no judiciário, a pressão nas redes sociais garante que crimes de racismo, violência de gênero ou policial ganhem visibilidade. “Se a pessoa não é ouvida na delegacia, ela poderá ser na internet”, pontua Campello. “Não raro, pessoas racistas se protegem e não gostam de ser questionadas. Nesse sentido, a pressão social é importante para mudanças. A internet como local para essa mobilização veio para ficar”, reforça a antropóloga.

Efeito colateral

Por um lado, a exposição de um comportamento inadequado pode ser “educativa” – principalmente no caso de instituições. “Uma empresa que foi racista, após exposta, pensará antes de repetir o crime”, exemplifica Accioly. Contudo, o punitivismo é um dos efeitos colaterais da cultura do cancelamento quando se trata de pessoas. Por isso, Campello atenta para o que chama de “paradoxo do cancelado”, quando setores progressistas – hoje atuantes no cancelamento – agem nas redes sociais de forma a simular os conservadores do passado. “O cancelamento pode estimular punição e perseguição, sem o direito à presunção de inocência – pauta de direitos humanos, que historicamente, foram defendidos por progressistas. Já o silenciamento e linchamento moral eram modos da extrema direita operar”, reflete.

Para Campello, o cancelamento também desconsidera que a pessoa cancelada tem potencial para ser educada e mudar seu comportamento. “Machismo e racismo são estruturais e antecedem a construção de mundo de um único sujeito. Pensar que este não pode mudar é jogar fora o papel da educação”, opina.

Isso não significaria isentar o culpado da responsabilidade pelo seu ato ou “passar pano” – gíria virtual para quem é conivente com um comportamento inadequado. “Há muitas tonalidades entre cancelar e passar pano. Acredito que somente o punitivismo não promove mudança de consciência”, analisa Campello. Pizzimenti concorda. “As pessoas tiveram vivencias diferentes e ninguém nasce correto e desconstruído sobre um determinado assunto. É um processo”, reforça o psicanalista.

Tribunal da internet

Pizzimenti acredita que o cancelamento de uma pessoa é reflexo de como a sociedade lida com o erro. “Pode ser uma forma de desviar o olhar dos meus próprios erros, camuflando aquilo que não desejo ver em mim. Como diria Sartre, é pensar que ‘o inferno são os outros’”. O cancelamento pode, ainda, estereotipar a pessoa cancelada, reduzindo-a a um único adjetivo pejorativo. “É como se dissesse ‘você é só isso’ e ponto final. Não deixa espaço para a complexidade que constitui o ser humano”, indica o psicanalista.

Por sua vez, podem ocorrer injustiças. Emmanuel Cafferty é filho de imigrantes mexicanos e mora nos Estados Unidos. Em julho deste ano, foi fotografado estalando os dedos enquanto dirigia. O sinal foi interpretado como uma referência a suprematistas brancos e Cafferty teve a imagem exposta nas redes sociais. Como resultado, perdeu o emprego e amigos. “Penso que o melhor espaço para denunciar ainda é a justiça, mesmo com suas falhas. Ela é uma conquista do estado democrático e prevê, ao acusado, presunção de inocência, direito ao contraditório e uma pena proporcional ao delito. Na internet, não haverá isso”, alerta Campello.

Pesquisa antes da ação

Para evitar o risco de injustiças ao cancelar uma pessoa ou instituição, é possível seguir algumas dicas. A primeira delas é checar a informação para descartar a possibilidade de fake news. “Ao criticar, seu argumento deve ser baseado em fatos, e não em ofensas pessoais”, orienta Accioly.

Cancelar personalidades falecidas merece um cuidado especial. “Por exemplo, José de Alencar era racista e se posicionou contra a abolição. Mas é um cânone da literatura e de obra relevante. Como é impossível mudar a opinião de uma pessoa morta, é importante trazer todas essas informações ao debate nos dias de hoje ao falar sobre sua obra, pensando-a de forma crítica e contextualizada”, recomenda a antropóloga. Pizzimenti concorda. “Não se pode perder de vista que o passado é interpretado com os olhos do presente”.

Também não indicado cancelar pessoas por postagens antigas. “Todos nós podemos mudar de opinião com o passar dos anos”, diz o psicólogo. Vale ainda analisar a trajetória de uma pessoa ou instituição antes de cancelá-la. “Aliados de causas sociais podem cometer um deslize e estarem abertos ao diálogo. Você aponta o erro, faz a critica e há a possibilidade de reflexão e retratação”, assinala Accioly.

Campello lembra também de considerar a pluralidade de vozes dentro de um mesmo movimento social antes de decidir cancelar alguém. Exemplo foi quando a atriz branca Alessandra Negrini surgiu fantasiada de indígena no Carnaval de São Paulo, em 2020. O fato reascendeu o debate sobre apropriação cultural.“Algumas lideranças indígenas saíram em defesa da artista, relembrando o histórico dela como aliada e afirmando que estavam, inclusive, ao seu lado no momento em que era fotografada. Outras reforçaram que etnia não é fantasia e tal ato era racista”, apresenta.

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