Há mais de duas décadas, a Lei 10.639/03 modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao estabelecer a obrigação de ensinar história e cultura africanas e afro-brasileiras nas escolas. Uma política educacional que passou a direcionar o currículo nacional e precisa ser acatada pela União, estados e municípios. Por meio de discursos e ações, as escolas passaram a ter o dever de reconhecer, valorizar e promover as contribuições de povos e nações africanas e afro-brasileiras na formação do Brasil.

Isso, porém, ainda não é uma realidade, conforme aponta a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais de Educação no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira” , realizada por Geledés Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana.

Realizado com 1.187 secretarias municipais de educação, — aproximadamente 21% das redes municipais de ensino do país — o estudo revela que 71% das secretarias de ensino realiza pouca ou nenhuma ação para efetivar o ensino de história e cultura afro-brasileira. Apenas 29% das secretarias realizam ações consistentes e perenes para garantir a implementação da lei e somente três em cada dez redes municipais adotaram práticas que poderiam ser estimuladas e replicadas.

“O objetivo do levantamento foi investigar a importância dada pelas secretárias para a efetivação da lei, ainda que certamente haja professores em todas as redes comprometidos com uma educação antirracistas na sua prática pedagógica diária. Porém, é preciso que as secretarias estimulem e ofereçam suporte para esses educadores desenvolverem um bom trabalho”, destaca a analista de políticas públicas do Instituto Alana Beatriz Benedito.
Ela explica que o compromisso político das secretarias é importante para que a lei saia do papel: “São necessários quatro eixos de atuação nas secretarias: ter equipe na estrutura administrativa olhando especificamente para educação para as relações étnico raciais; investimento orçamentário; regulamentação municipal – como um plano municipal de educação com metas específicas e também escolas promovendo ações ao longo do ano.”

Leia também: 11 orientações para promover um ensino de história decolonial

Como funcionou o estudo?

A pesquisa agrupou os municípios em três perfis de secretarias: as que realizam ações de maneira menos estruturada; as que não realizam ações; e as que realizam ações consistentes e perenes para a implementação da lei.

O maior grupo (53%) realiza ações esporádicas ou associadas a projetos isolados e datas comemorativas, como o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Nesses casos, o trabalho fica sob a responsabilidade de uma pessoa ou grupo pequeno, sem estrutura e suporte institucional. Já as secretarias que admitem não realizar nenhum tipo de ação para o cumprimento da lei representam 18% do total. Somados, ambos os perfis representaram 71% da amostra.

O levantamento descobriu, ainda, que apenas 26% das secretarias têm uma área, equipe ou profissionais específicos responsáveis pelo ensino de história e cultura africana e afro-brasileira; 39% realizam investimentos e disponibilizam recursos para isso; 8% afirmam ter um orçamento para o tema; e 1 a cada 5 municípios possui regulamentação específica.

A maioria das secretarias afirmou que as escolas da rede incorporaram a temática em seus Planos Políticos Pedagógicos (PPPs). Entretanto, 69% declararam que a maioria delas realiza atividades apenas em novembro. “São práticas que não podem ser recortadas, mas planejadas e estimuladas se aplicadas o ano inteiro de forma transversal e interdisciplinar”, explica Benedito.“Ações perenes também passam por maior diversidade na escolha de autores na aula de literatura e incorporar as contribuições dos povos africanos em tecnologia e ciência”, exemplifica.

A especialista lembra que somente 24% das secretarias também acompanham indicadores de desempenho dos estudantes por marcadores de raça e etnia. “É importante não apenas o ensino que chega ao estudante em sala de aula, mas construir uma gestão mais sensível a essa agenda antirracista”, aponta Benedito.

Sobre os principais desafios para implementação da lei, 42% das secretarias destacaram a dificuldade dos profissionais em transpor o ensino nos currículos e nos projetos das escolas, enquanto 33% apontaram a falta de informação e orientação suficientes dadas às secretarias sobre a temática.

Avanço nas temáticas

Quando perguntados sobre quais são os temas mais importantes a serem trabalhados nas escolas, a maioria dos gestores afirmou serem a diversidade cultural, literatura e cultura alimentar. Temas mais “incômodos”, como o legado da escravização nas Américas, o letramento sobre questões raciais e as construções de privilégios históricos, foram menos citados.

“Os temas citados são bons e valorizam a contribuição do povo negro na constituição da história e da construção do país. São temas de entrada, principalmente para os municípios que nada fazem ou realizam poucas ações . Mas avançar para temáticas mais abrangentes ajuda a rever práticas e criar novas narrativas para uma educação antirracista”, ressalta Benedito.
De acordo com as redes, os materiais didáticos utilizados pelas escolas sobre a temática são distribuídos via Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD). Porém, 1/3 mencionou materiais específicos distribuídos pelas secretarias.

O levantamento também mostrou que a participação dos Conselhos Municipais de Educação nas discussões sobre a lei em questão é pequena. Apenas 25% das secretarias afirmam que o conselho colaborou na criação de algum parecer ou resolução acerca do tema.“Eles têm um papel central de política de educação no município, não apenas de ajudar na construção e regulamentação, mas também em fiscalizar o cumprimento da lei. Assim, é importante que as secretarias dialoguem constantemente com os conselhos e os vejam como parceiros”, finaliza Benedito.

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