Os bandeirantes foram homens paulistas dos séculos XVI a XVIII que, para obter mão de obra escravizada para suas fazendas de trigo e localizar metais e pedras preciosas, invadiram os sertões, quilombos, territórios indígenas e espanhóis.

No século XX, passaram a ser considerados heróis, em um processo que envolveu a encomenda de pinturas e esculturas que moldavam esse personagem como um desbravador altivo, em poses semelhantes às de reis franceses. De lá para cá, eles foram homenageados com seus nomes em ruas e avenidas, com a construção de monumentos e ainda batizaram a sede do governo estadual paulista, o Palácio dos Bandeirantes.

“Nas pinturas, destacam-se seu caráter superior e heroico, sendo eles sempre retratado de maneira altiva. Também se enfatiza uma origem branca dos bandeirantes, como herdeiros da civilização europeia no Brasil colonial, o que é uma imagem racista, pois muitos deles eram pardos ou mestiços. Por sua vez, foi omitida a violência que eles praticaram”, explica o historiador e diretor do Museu Paulista da Universidade de São Paulo (USP), Paulo César Garcez Marins.

As aulas de história, porém, podem estimular leituras críticas das obras que possuem os bandeirantes como figura central, ajudando o aluno a entender que a imagem positiva é uma construção do século XX que atendeu a interesses.

Em entrevista para o portal de Educação do Instituto Claro, Marins contextualiza os motivos que catapultaram os bandeirantes como heróis e como essa construção foi realizada, temas que podem ser abordados em aula.

Instituto Claro: Quem foram os bandeirantes?

Paulo César Garcez Marins: Foram homens paulistas dos séculos XVI, XVII e início do XVIII que, para obter mão de obra escravizada para suas fazendas de trigo e para localizar metais e pedras preciosas, invadiram os sertões, quilombos, territórios indígenas e espanhóis. Foram se especializando em percorrer longas distâncias e interiores por estarem acompanhados de indígenas e por também serem, alguns deles, mestiços de português e povos originários.

Quais discussões precisam ser atualizadas sobre bandeirantes na escola?

Marins: A ideia que temos das Bandeiras foi cunhada no século XX  por intelectuais, historiadores e artistas, ou seja, por descendentes de bandeirantes das elites paulistas, que os transformaram em heróis. Eles não eram entendidos assim antes disso. Hoje, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) procura estimular leituras críticas para que o aluno entenda que a imagem positiva é uma construção do século XX que atende a interesses.

Por que houve a construção dos bandeirantes como heróis?

Marins: Havia um interesse em heróis paulistas da nação naquele momento. Houve, no século XIX, uma emergência econômica entre cafeicultores paulistas que refletiu em uma emergência política – lembrando que os três primeiros presidentes civis da República foram paulistas: Prudente de Morais (1894), Campos Sales (1898) e Rodrigues Alves (1902). Isso tudo culminou em uma emergência simbólica sobre como imaginar um passado que destacasse a importância dos paulistas, que tinham menos prestígio do que outros estados no cenário colonial. São Paulo era uma fazenda de trigo, pobre e simples em comparação com Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, enriquecidos pela produção de açúcar e mineração. Na ausência de um passado rico, construiu-se um passado heroico. O início do processo de enaltecimento coincidiu com essa emergência. Eles se tornaram mais importantes no século XX do que eram no XVII.

Quais elementos foram destacados e quais omitidos na construção dos bandeirantes como heróis?

Marins: Nas pinturas, destacam-se seu caráter superior e heroico, sendo eles sempre retratado de maneira altiva. Também se enfatiza uma origem branca dos bandeirantes, como herdeiros da civilização europeia no Brasil colonial, o que é uma imagem racista, pois muitos deles eram pardos ou mestiços. Foi omitida a violência que eles praticaram. Eles nunca são retratados em ação, matando, escravizando, violando ou queimando missões jesuíticas e aldeias indígenas. São representados de forma pacífica, como se não fossem violentos.

Como essa construção foi feita?

Marins: O grande responsável por essa construção da representação heroica do bandeirante foi o professor Afonso d’Escragnolle Taunay (1876-1958), diretor do Museu Paulista entre 1917 e 1945. Ele orientou a criação dessa imagem, determinando em cartas o que os pintores deveriam fazer e, em certo sentido, corrigindo as decisões que deveriam ser eliminadas da versão final das obras. Hoje, isso também é abordado nas exposições do museu, mostrando como ele interferia no trabalho dos artistas, algo que pode ser discutido com estudantes para entender que qualquer imagem sempre tem relação com o desejo de quem a encomenda e de quem a realiza.

Em quais imagens podemos observar a mudança na representação dos bandeirantes?

Marins: Destaco duas pinturas de momentos distintos do mesmo artista, Henrique Bernardelli (1857-1936). Em “Os Bandeirantes” (1889), os personagens-título são representados como animais, deitados no chão, bebendo água do riacho como cachorros, enquanto os indígenas são representados como heróis, de corpo atlético. Já em “Ciclo da Caça ao Índio” (1922), quase três décadas depois e por exigência do Museu Paulista, os bandeirantes são representados como heróis no sertão, com pose dos reis da França.

O que os professores de história do ensino fundamental e médio devem observar na hora de ensinar o conteúdo de bandeirantes na América Portuguesa?
Marins: Deve-se considerar que a leitura de personagens históricos deve ser cautelosa, pois o mesmo personagem bandeirante que, há cem anos, era percebido como herói, hoje, em muitos circuitos intelectuais e movimentos sociais, é considerado um bárbaro assassino. Em diferentes épocas, as sociedades constroem interpretações variadas dos mesmos personagens, pois eles são ambíguos. Por um lado, contribuíram para a conquista do Brasil, algo entendido como positivo; por outro, devastaram populações indígenas e quilombos. Os personagens históricos mudam conforme o ponto de vista que se adota em relação a eles. É importante construir não só a leitura do personagem, mas também o olhar a partir dos pontos de vista que o traçam; assim construímos a história. Lembrando que a interpretação do passado é humana, feita por pessoas e, portanto, carregada de um ponto de vista. O herói é positivo para quem acredita nele como tal, e negativo para quem vê o oposto. Mas, ao final, eles são ambas as coisas; somos seres ambíguos e incoerentes em nossa totalidade.

Como o Museu do Ipiranga incorporou essas questões nas suas exposições?

Marins: Os museus colocam em questão os pontos de vista dos curadores, profissionais que trabalham e dialogam com a sociedade, produzindo conteúdos tanto do ponto de vista histórico quanto de opiniões pessoais. Assim, tratamos essas obras que representam bandeirantes como parte integrante de um processo histórico.

É importante dialogar com o público sobre como essa visão positiva dos bandeirantes foi construída, questionando para quem e por que foi criada, e como essa visão é revista hoje por movimentos sociais. Numa mesma sala, colocamos quadros que celebram os bandeirantes e caricaturas contemporâneas que os criticam, expondo ao público diferentes pontos de vista para que ele próprio reflita.

Você indicaria materiais de apoio para os professores sobre o tema?

Marins: Indico dois materiais voltado para docentes que apresentam duas exposições do Museu do Ipiranga: Uma história do Brasil e Passados Imaginados.

Veja mais:

Plano de aula – Bandeirantes paulistas: as expedições do século XVIII

9 orientações para ensinar história usando pinturas

Conheça 7 quadros para ensinar história do Brasil

11 orientações para promover um ensino de história decolonial

Como ensinar Independência do Brasil sob uma perspectiva decolonial?

Crédito da imagem: Rovena Rosa – Agência Brasil

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