O destino de estátuas e homenagens públicas a escravocratas e torturadores se tornou um debate no Brasil e no mundo na década de 2020, ano em que a estátua do mercador de escravos Edward Colston foi jogada em um rio em Bristol, no Reino Unido, enquanto outras, de Cristóvão Colombo e do militar defensor da escravidão Jefferson Davis, foram vandalizadas na Virgínia, nos Estados Unidos.

No Brasil, em 2021, o monumento do bandeirante Borba Gato, membro de um grupo historicamente vinculado ao assassinato de pessoas negras e indígenas, foi incendiado em São Paulo (SP) por pessoas que se identificavam com a luta antirracista.

“São mudanças e questionamentos que vêm da própria sociedade. Uma estátua é colocada em um espaço público para nos lembrar de algo, de modo que discutir essas representações é debater o direito à memória”, analisa a doutora em história e coordenadora do Grupo de Trabalho Interinstitucional Memorial Doi-Codi Deborah Neves.

Opinião semelhante tem a doutora em arquitetura e urbanismo e diretora-técnica do Memorial da Resistência de São Paulo Ana Pato. “Houve uma mudança de perspectiva. O debate traz a experiência histórica e reivindicação daqueles que não escreveram a história oficial para que essa seja revista”, opina.

“É entender que a própria cidade constituiu o direito à memória e é um espaço em que o genocídio de povos indígenas e a escravização de povos africanos devem ser lembrados, ou seja, de que a história do nosso próprio país se constituiu pela violência”, complementa Pato.

Para Neves, o debate sobre o destino desses monumentos já era uma discussão entre historiadores e nas universidades, sendo ampliada com a democratização do acesso ao ensino superior por parte de grupos antes excluídos, como indígenas, pretos e pessoas da periferia.

“Ter uma sociedade mais justa passa por rever esses monumentos e nomes de rua. Ajuda a não esquecer e a elaborar situações de sofrimento para evitar que elas se repitam”, ressalta Pato.

Manter ou remover?

Segundo Neves, não existe fórmula única ou solução aplicável a todos os monumentos de escravocratas e torturadores.

“Defendo que nenhuma decisão seja tomada sem ouvir as pessoas envolvidas, sejam os moradores do bairro e da cidade, sejam as populações que foram diretamente atingidas pelas ações do homenageado. Quanto mais pessoas no debate, melhor”, afirma.

Exemplo do destino dado à estátua do escravocrata Edward Colston, que foi levada ao museu de Bristol, onde o público votou para que ela não retornasse às ruas.

“Em um museu, ela pode ficar exposta, ser contextualizada e promover um debate qualificado. O que não pode é deixar a imagem exposta sem crítica”, afirma Neves.

“O fundamental é entender o motivo das reivindicações e o impacto da mudança. O que significa para uma sociedade, por exemplo, retirar a estátua de um bandeirante?”, questiona Pato.

Além disso, Neves lembra que o debate deve ser pautado pelo questionamento: aquela homenagem faz sentido no tempo presente?

Situações em que a sociedade reviu seu posicionamento são diversas, como a retirada de uma estátua do jogador de futebol Daniel Alves, condenado por estupro, em Juazeiro (BA) em 2024; e a mudança do nome do “Elevado Presidente Costa e Silva” para Presidente João Goulart, em São Paulo, em 2016.

“Ou seja, substitui-se a homenagem de um presidente da ditadura civil-militar (1964-1985) para um presidente democraticamente eleito e que foi deposto por um golpe”, explica Pato.

“A questão é que manter no espaço público um marco de violência é algo que não dialoga com o passado, mas com o presente. Representa continuidade dessa mesma violência, além de simbolizar que não houve um trabalho por memória, verdade e justiça. Também pode simbolizar a tentativa de amenizar um período que foi brutal, caso da ditadura civil-militar brasileira”, acrescenta.

Já no caso da manutenção da estátua, Neves lembra que o ideal seria acomodar também o discurso dos grupos que foram impactados pelas ações do homenageado “Pensando no Borba Gato incendiado, uma alternativa seria deixá-lo chamuscado pelo fogo, para também representar a revolta de quem se sente atingido”, recomenda.

Possibilidades pela arte

Neves conta que a arte tem trazido boas respostas para pensar esses monumentos, caso do Projeto Demonumenta, idealizado pela artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) Giselle Beiguelman, que listou monumentos do Centenário da Independência e propôs intervenções do público via aplicativo de realidade aumentada.

Beiguelman e o artista Andrey Koens também são responsáveis pelo Projeto Ditamapa, que localiza ruas, avenidas, pontes e viadutos que carregam os nomes dos presidentes militares da ditadura civil-militar por todo o Brasil.

Como iniciativas inspiradoras, Pato cita o Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga, que possui acervo de obras sobre bandeirantes. “Após a sua reinauguração, em 2022, a instituição trouxe reflexões sobre a construção do mito do bandeirante como desbravador e sua atuação violenta”, compartilha.

Outras ações passam por rever a diversidade de personalidades homenageadas nas cidades. Levantamento do Instituto Cultne (2023) revelou que, dos 358 bustos e estátuas que homenageiam pessoas no município do Rio de Janeiro, 322 retratam brancos. Entre as personalidades negras, apenas três são mulheres.

Pato também recomenda criar mais memoriais em locais que foram palco de violência, caso do Memorial da Resistência, que ocupa o antigo prédio do Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), local de torturas e assassinatos na ditadura.

“Além das homenagens aos presidentes da ditadura em espaços públicos, não podemos esquecer que até hoje nenhum representante do Estado foi punido pelo assassinato e desaparecimento de civis na ditadura militar”, lembra Pato.

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