Para o doutorando em urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Gabriel Santiago Pedrotti, há um claro apagamento da memória LGBTQIA+ na sociedade como um todo que se reflete na arquitetura das cidades. “Ele se manifesta na falta de monumentos e marcos públicos, na demolição de locais históricos LGBTQIA+ e no não registro da história da comunidade em documentos oficiais da cidade, como mapas, registros de propriedade e arquivos municipais”, descreve ele, que é também autor do projeto Cidade Queer (@cidadequeer).

“Somam-se a isso o vandalismo e destruição das poucas iniciativas de preservação, a falta de iniciativas de fomento e o enfraquecimento de políticas públicas consagradas, como a proibição de paradas e marchas”, lista Pedrotti.

Ele pontua que tal apagamento está relacionado à LGBTQIAfobia e preconceitos estruturais. “A arquitetura das cidades é um reflexo da sociedade em que vivemos e a preservação da memória é uma escolha daqueles dominantes que escrevem a história. Assim, pouca atenção é dada para a preservação dos lugares significativos para identidades dessa comunidade, como bares, clubes, teatros e espaços públicos que serviram como pontos de encontro, sociabilidade e resistência”, contextualiza o pesquisador.

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O apagamento da memória LGBTQIA+ nas cidades traz consequências tanto para a comunidade quanto para a sociedade como um todo, como explica o arquiteto do coletivo Arquitetura Bicha (@arquiteturabicha) Fred Costa: “A homofobia e a transfobia reforçam a ideia de que não deveríamos existir ou apenas existir em segredo e marginalizados. Isso provoca uma sensação de falta de lugar e de inadequação.”

“Há perda de identidade, pertencimento e autoestima; dificuldade de criação de laços comunitários e perpetuação de estereótipos. Também pode dificultar a compreensão e valorização da diversidade cultural e histórica da cidade, além de impedir que futuras gerações conheçam a história dessas comunidades”, complementa Pedrotti.

Monumentos remetem a violências

Os poucos monumentos que homenageiam pessoas LGBTQIA+ no Brasil enfrentam problemáticas.“São representações e homenagens a figuras públicas lembradas por muitas coisas, mas quase nunca por terem sido LGBTQIA+. Como se isso fosse uma ofensa”, opina Costa.
Além disso, ele ressalta que a maioria deles relembra violências, levando o nome de pessoas assassinadas por LGBTIfobia. Exemplos são o monumento ao indígena Tibira, em São Luís (MA), considerado o primeiro assassinato por homofobia do Brasil e as homenagens à vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro (RJ). Em Fortaleza (CE), a travesti Dandara Ketley dá nome à rua do Bairro Bom Jardim.

“Essas homenagens são importantes, mas os monumentos deveriam cobrir outras facetas da vida social da comunidade. Não queremos ser lembrados somente por nossas mortes, mas pelo que construímos em vida”, destaca o professor do curso de arquitetura da Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro do Arquitetura Bixa Clévio Rabelo.

“Se, por um lado, perpetuam a memória de pessoas LGBTQIA+, esses monumentos também fomentam a ideia de que só sendo assassinado sua memória ser perpetuada. É preciso se afastar desses ciclos de violência”, opina Pedrotti.

Das iniciativas recentes, Pedrotti cita a criação do Patrimônio Cultural Carioca do Circuito da Diversidade no Rio de Janeiro (RJ), inaugurado em 2021. “Porém, muitas das placas que identificam o circuito já foram vandalizadas”, lamenta. Desse projeto, houve uma homenagem à Lota de Soares Macedo, responsável pela criação do Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro.

Placa do Circuito da Diversidade em homenagem a João do Rio - Marcos de Paula / Prefeitura do Rio
Placa do Circuito da Diversidade em homenagem a João do Rio (crédito:Marcos de Paula / divulgação Prefeitura do Rio de Janeiro)

“Temos ainda que nos perguntar o que é monumento. Muitas pessoas trans foram sepultadas sem os seus nomes sociais respeitados. Toda lápide em que esse direito é reconhecido pode ser considerada um monumento”, reflete Rabelo.

Conservadorismo nos tombamentos

Os pesquisadores apontam que os tombamentos históricos de prédios e demais locais da cidade também não são feitos por uma perspectiva LGBTQIA+.“Muitos foram desenvolvidos antes do reconhecimento dos direitos LGBTQIA+. É preciso atualizar os critérios de tombamento para incluir perspectivas inclusivas”. justifica Pedrotti.

“Os tombamentos priorizam aspectos da memória coletiva e da vida pública. A sexualidade, por outro lado, é uma dimensão que é atribuída à vida privada. Isso impede um entendimento da presença dos LGBTQIA+ nas cidades e que a comunidade se compreenda coletivamente”, acrescenta Costa.

Rabelo explica que as estruturas públicas e privadas ligadas ao patrimônio são, na maioria das vezes, conservadoras. “Elas repetem cartas patrimoniais internacionais e não estão muito abertas para pensar um modelo decolonial de patrimônio que pudesse incluir as questões LGBTQIA+”, analisa.

“A academia também precisa avançar nesse sentido, porque sempre fica a pergunta: o que muda na arte ou no trabalho de uma pessoa dizer que ela é LGBTQIA+? No nosso entendimento, muda tudo”, enfatiza Rabelo.Entre boas práticas, ele cita o recente tombamento do Terreiro Ilê Axé Opó Ofonjá, de Mãe Stella de Oxossi, em Salvador (BA). “Desde os anos 1980, ele vem sendo comandado por ialaorixás lésbicas”, conta.

Segundo Rabelo, pensar em uma arquitetura de cidade inclusiva à população LGBTQIA+ também significa questionar o conceito de ‘arquitetura universal’.“Essa ideia do universal permeou o imaginário de toda a produção cultural do Renascimento até meados do século XX e a arquitetura não esteve de fora. Mas as lutas contraculturais e das minorias dos anos 1960 nos mostraram que o universal era, na verdade, um modelo de vida homem-branco-cis pautado por um padrão heterossexual. Dessa forma, achamos que respostas universais não dão mais conta de explicar a variedade dos modos de vida das pessoas em relação ao seu gênero e sexualidade”, explica.

“Há uma frase de Jan Gehl que ficou famosa: a cidade é para as pessoas. Mas se esquece que alguns tipos de pessoas não podem andar na rua sossegadas e sem sofrerem violências, como mulheres e algumas LGBTQIA+. Assim, talvez o grande monumento que precisava ser erguido fosse o direito de andar na rua”, assinala.

Redes sociais ajudam na mudança

No ambiente do Instagram, dois projetos buscam fomentar a preservação da memória LGBTQIA+ nas cidades. Pedrotti é autor do projeto Cidade Queer, perfil que reúne e divulga conteúdos relacionados a espaço, cidade e sexualidades dissidentes. “A ideia é refletir sobre a problemática das cidades a partir das desigualdades de gênero”, diz.

Já o Coletivo Arquitetura Bicha reúne seis arquitetos de diferentes locais do país. “Queremos falar sobre as histórias, os projetos e as representações de arquiteturas feitas ou performadas por pessoas LGBTQIA+”, sintetiza Rabelo. Entre as iniciativas, o Arquitetura Bicha busca resgatar a existência e curiosidade de antigos espaços de socialização da comunidade, como bares e boates.“Poucos estabelecimentos foram inaugurados antes da Revolta de Stonewall [marco dos direitos LGBTQIA+, em 1969]. Porém, muitos foram inauguradis logo após e em lugares surpreendentes”, explica Rabelo.

“O Cabaré Casanova, no Rio de Janeiro, abriu as portas em 1937, na Lapa. A Flower´s, em Porto Alegre, foi inaugurada em 1971. Já a Boate Pedrita, na periferia de São Luís, em 1974”, destaca.“Uma história maravilhosa é a do Kibe Lanches, em Recife (PE). Esse bar com mesas na calçada vendia lanches árabes na fachada e, na parte de trás, abrigava uma boate que foi importante para a resistência queer dos anos 1980 naquela cidade”, compartilha Rabelo.

“Outros exemplos interessantes são os locais de referência nos cuidados na epidemia do HIV/AIDS. Caso do Palácio das Princesas de Brenda Lee (espaço de acolhimento de mulheres trans que adoeciam comandado por uma travesti)”, destaca Costa.

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Atualizado em 14/03/2023, às 14h12

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