O ensino da independência do Brasil sob uma perspectiva decolonial mostra aos alunos que outros setores da sociedade, além do homem branco, também participaram do processo. E explica como isso ocorreu.

“A escola ainda aborda a independência como um pacto das elites, que teriam excluído a participação popular. No entanto, as pesquisas recentes apontam que as camadas populares, o que inclui a população negra, participaram ativamente da vida política nacional”, diz o doutor em história e professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) Petrônio Domingues. 

Historiadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vânia Maria Losada Moreira destaca que “a independência é palco das elites, mas não sem considerar as bases da população”. 

“A elite geralmente pensa em como organizar a sociedade a partir de outros setores da população, ainda que por um lado negativo, já que o que ela deseja implementar pode gerar revoltas”, afirma.

Para entender a participação da população negra e dos povos indígenas, por exemplo, Losada Moreira destaca que o processo de independência não deve ser confundido com um projeto nacional de Brasil.

“Ou seja, analisamos esses setores diversos não como protagonistas, porque nem sempre indígenas e pessoas escravizadas estavam pensando em um projeto de nação para o Brasil. Analisamos o lugar deles naquela circunstância social”, explica. 

Participação indígena 

Segundo a professora, ainda persiste a imagem dos indígenas como povos primitivos e marginalizados da comunidade nacional, não como povos que atravessaram diferentes momentos da história do país e que são, sim, parte do tecido social. “Eles também estavam na raiz e participando do processo de independência”, diz a professora.

A participação indígena, porém, deve ser pensada no plural. “São povos com diferentes culturas e com graus distintos de integração com a colônia. No momento da independência, você tem desde aqueles que não possuíam ligação com a colônia e enxergavam brasileiros e portugueses como invasores de suas terras até populações indígenas morando em vilas e freguesias, com terras e participação política”, explica.

No âmbito das resistências, Losada Moreira lembra que havia uma campanha de colonização dos interiores do Brasil, lançada pelos portugueses após 1822, chamada de Guerras Justas ou Guerras Ofensivas. Etnias como as dos Kaingang e dos Botocudos foram conquistadas com o uso de armas. 

Já nos setores que estavam integrados à colônia, ela cita as vilas indígenas pombalinas. “Eram projetos de missões religiosas em vilas indígenas, e essas pessoas possuíam participação política. Durante muito tempo, os historiadores desconsideraram esses indígenas porque receberam nomes portugueses, mas essa população indígena não desapareceu”, ressalta.

Por fim, a historiadora destaca a “insegurança jurídica” que a independência trouxe para os povos indígenas em três pontos fundamentais. 

“Primeiro, em relação à sua vida, porque as Guerras Justas tinham um viés genocida ainda não identificado nos livros didáticos. Depois, a liberdade: com o processo de independência, a elite política quis desenhar e reinstalar processos opressores de obtenção do trabalho indígena, com leis de quase escravidão. Por fim, do ponto de vista da propriedade: os indígenas se preocupavam se suas terras seriam respeitadas ou se a independência seria um pretexto para retirá-las”, assinala.

Professores podem acessar mais informações sobre o tema no livro “Povos indígenas, independência e muitas histórias: repensando o Brasil no século XIX”, organizado por Losada Moreira e que reúne textos de diferentes pesquisadores sobre esse momento histórico. 

Participação da população negra

De acordo com Domingues, às vésperas da independência, havia 1.107.389 pessoas escravizadas no Brasil. “Neste cenário, duas questões eram importantes: primeiro, boa parte da população negra era escravizada; segundo, os livres e libertos ocupavam a base da pirâmide dos que eram excluídos econômica e politicamente. Assim, muitas pessoas pretas e pardas viam na independência uma oportunidade de superar a exclusão e abolir a escravidão. Daí sua intensa participação no processo de emancipação política”, conta.

A importância de abordar a independência do Brasil a partir da população negra é mostrar que esse segmento populacional foi ativo na construção da história do Brasil, com capacidade de articulação, negociação, resistência e luta. 

“Ela participou de todas ou quase todas as lutas sociais e políticas levadas a cabo no Brasil da Colônia à República”, explica Domingues. 

Como havia distintos interesses e projetos de nação no processo de independência, o professor lembra que o comportamento de escravizados e das pessoas negras em geral não foi uniforme.

“Muitos aderiram ao movimento de independência para, com isto, tentar a alforria; alguns lutaram por simples obediência aos seus senhores; outros se aproveitaram da confusão e fugiram, aquilombando-se; ainda tiveram aqueles que participaram ao lado dos portugueses”, lembra Domingues.

Pessoas negras também foram protagonistas no processo. Na Bahia, onde as batalhas contra os portugueses se estenderam até o início de julho de 1823, a participação negra foi intensa. “Podemos citar Maria Felipa, mulher negra que trabalhava com pescado, na Ilha de Itaparica [BA], e teria liderado ações coletivas do lado patriota”, detalha o professor.

“Surgiu até um tal de ‘partido negro’, uma referência à ação de escravizados, libertos e pessoas livres ‘de cor’ defendendo seus próprios anseios, na medida em que tentavam negociar seu engajamento no movimento da independência ou subverter a própria ordem escravocrata no calor do conflito luso-brasileiro”, completa.

Porém, Domingues adverte que não se deve evitar dissociar passado e presente ao falar da participação negra na independência.

“Por mais relevantes que possam ter sido as transformações provenientes da ruptura do estatuto colonial, o Império do Brasil manteve a exploração do trabalho compulsório. Isso frustrou escravizados e pessoas ‘de cor’ que lutaram contra os portugueses, sonhando com uma liberdade que só viria às vésperas da República, e ainda sem inclusão social”, enfatiza o docente.

Segundo ele, não se pode desconsiderar “as cicatrizes profundas que a escravidão, pujante à época da independência, deixaria para nós no período republicano”, acrescenta.

Participação feminina

“Ter as mulheres como foco do processo de independência é uma maneira de resgatar personagens e figuras historicamente silenciadas”, opina a pesquisadora Virginia Siqueira Starling, uma das autoras do livro “Independência do Brasil: As mulheres que estavam lá”. 

O projeto buscou apresentar mulheres que estiveram envolvidas direta ou indiretamente com o contexto político e social da independência.

“Maria Quitéria, por exemplo, atuou no front de batalha; Leopoldina estava no centro dos acontecimentos no Rio de Janeiro e foi estadista, pensando estrategicamente ao decidir permanecer no Brasil e não retornar à Europa; Bárbara de Alencar, matriarca cearense, liderou um movimento republicano e foi a primeira brasileira a ser presa por suas convicções políticas; Maria Felipa, marisqueira negra da Ilha de Itaparica [BA], chefiou batalhões de mulheres na defesa contra navios portugueses, e Ana Lins se entrincheirou em sua propriedade nas Alagoas em nome da República. Era uma aliada da Revolução Pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador”, lista Starling. 

“Elas romperam inúmeras barreiras de gênero, ainda mais sólidas do que as atuais, para se posicionar politicamente na cena pública. A política sempre era zona proibida às mulheres, e o envolvimento com as disputas pela independência representou um movimento de conquista em um espaço tradicionalmente masculino”, explica Starling.

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Crédito da imagem: Paulo Pinto – Agência Brasil

 

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