Era 2015 quando o professor de ciências Bernardo Gonzales assumiu a identidade de homem transgênero no ambiente profissional. Na ocasião, ele tinha 25 anos e lecionava para o 1º do ensino médio na rede estadual de São Paulo (SP). “Aproveitei duas aulas seguidas para explicar o processo e abrir para perguntas dos alunos. Ficou um silêncio, seguido de dúvidas genuínas e acolhimento”, relata.
O professor deixou em aberto a possibilidade dos estudantes o tratarem pelos pronomes masculino ou feminino. “Despedir-me da antiga identidade feminina foi um processo gradativo para mim também. Assim, achei uma atitude natural para todos”, observa. A mudança foi igualmente aceita por pais e responsáveis. “Era um professor querido e discutia o desenvolvimento dos alunos respeitosamente nas reuniões. Já a relação com os professores da escola foi bem mais complexa”, relata Gonzales.
Leia mais: Como alunos e alunas transgêneros se sentem na escola?
A professora de geografia Sayonara Nogueira teve experiência semelhante e acabou pedindo exoneração do cargo após 16 anos de docência na rede estadual em Uberlândia (MG). O motivo foram situações de assedio moral e violência psicológica por parte dos colegas de trabalho.
“Adoeci e depois de uma sequencia de afastamentos por depressão, optei por sair”, relata ela, que hoje coordena o curso de Pedagogia de uma faculdade particular e o Instituto Brasileiro de Professores Trans, que oferece materiais pedagógicos gratuitos para professores trabalharem o tema com os alunos em diferentes disciplinas. “Ainda faltam politicas de diversidade no ambiente escolar para os corpos que rompem padrões, como LGBTI+, não-brancos, gordos e pessoas com deficiência”, avalia.
Outra professora discriminada por colegas foi Herbe de Souza. Ela acumula uma experiência de 20 anos de magistério, sendo a última década na rede municipal de Caieiras (SP). “O que eles desconhecem, expelem. Ainda que não tenha chegado de maneira impositiva, tentaram me expulsar somente por estar naquele ambiente”, conta. “Entretanto, tive diretoras que me defenderam e ajudaram a permanecer”.
Para alunos e pais, sua identidade era vista com tranquilidade. “Não preciso falar que sou travesti: meu corpo chega antes e fala por mim. Mas, como sempre estive dentro da escola, não há estranheza. Ainda que o novo assuste no começo”, opina ela, que fica aberta aos questionamentos de alunos. “Respondo com níveis diferentes de profundidade, de acordo com a faixa etária”, diz.
Veja também: Pesquisa revela que 73% dos alunos LGBT foram agredidos verbalmente na escola
“Motor de exclusão”
Para a gestora de políticas de educação para relações de gênero e sexualidade de Pernambuco, Dayanna Louise, a ausência da temática na formação inicial é responsável pelo comportamento de muitos professores de discriminarem colegas e alunos trans. “Houve avanço do discurso de ódio na escola, incentivado por figuras públicas que criminalizaram o direito de existir da pessoa LGBTI+”, avalia Louise. Além disso, ela acredita que a má-formação traz professores despreparados e que tendem a reproduzir ações de exclusão dentro da escola. “Problema que respinga nas secretarias de educação, que precisam formar esse corpo docente”, contextualiza ela, que também é uma mulher trans.
Porém, práticas construídas socialmente podem ser desconstruídas. “Sugiro reconhecer as diferenças para que a escola seja realmente para todos. Diferença que é força e não fraqueza. Mas quando diz ‘somos todos iguais’, a escola nega todas essas desigualdades de território, econômicas, de raça e gênero que estão na sociedade”, ressalta Louise.
Confira: Por que o Dia do Orgulho LGBT é celebrado em 28 de junho?
No sentido oposto, a presença do professor trans promove a cidadania na prática. “Confronta a inclusão no projeto político pedagógico da escola. Para completar, esse professor desenvolve um trabalho atento à afetividade e ao acolhimento”, diz Nogueira. “A diversidade fica posta e os alunos percebem que há professores de todos os tipos: cisgeneros, transgeneros, homens, mulheres, heterossexuais e gays. Isso faz com que se identifiquem e também se sintam acolhidos”, resume Souza.
Após a transição, Gonzales conta que se tornou um adulto de referência para alunos desabafarem problemas. “Eles se sentem abertos a compartilhar de violência sexual e doméstica ao bullying”, revela. A representatividade ainda evita que alunos trans sofram violências e sejam expulsos da educação formal. Com isso, não acessam o mercado de trabalho e acabam restritos a vulnerabilidades sociais e até mesmo ao trabalho na prostituição. “Como gestora pública, minha luta é para que eles se sintam seguros na escola e finalizem sua escolarização”, defende Louise.
Para pessoas trans que têm o sonho de lecionar, o desafio ainda é concluir o ensino médio. “Indicaria procurar apoio para retornar aos estudos, buscar universidades com cotas para pessoas transgêneros e concursos públicos, que ainda ajudam a entrar no mercado de trabalho com maior segurança”, aconselha Nogueira. “Ao final, a educação ainda é a principal ferramenta contra a transfobia”, completa.
Veja mais:
Para estimular respeito entre alunos, escola realiza ações contra homofobia