Mais do que ensinar os estudantes a investirem ou serem consumistas, a educação financeira nas escolas pode ter um viés humanista, com diretrizes que convergem para a sustentabilidade do planeta e direitos humanos. É o que defende o doutor em educação matemática e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Marco Kistemann.
“A educação financeira proposta por instituições financeiras visa apenas ensinar a gerir o dinheiro e multiplicá-lo, contudo, é preciso entender que a prioridade é a saúde e o bem-estar de cada cidadão e de todas as formas de vida do planeta”, explica. “Caso contrário, teremos um mundo com cidadãos com dinheiro e sem saúde, água potável, alimentos saudáveis e meio ambiente”, descreve Kistemann.
Segundo o pesquisador, a educação financeira deve começar no âmbito familiar, com o diálogo sobre dinheiro, desperdício e lixo gerado, gastos desnecessários de água e de energia. O segundo passo ocorrerá nos ambientes sociais, como a escola.“É no contexto escolar que teremos um maior espaço para problematizar cenários e para a investigação de temas financeiro-econômicos mediados pelos professores”, pontua.
No âmbito escolar, é importante que as atividades de educação financeira sejam desenvolvidas de forma atrativa e lúdica. O uso de dinâmicas, do cinema, do teatro, aplicativos e de outras manifestações artísticas proporcionará uma aprendizagem significativa para os alunos.
“Trabalhos em equipes que promovam a investigação, a análise e as reflexões críticas podem ser desenvolvidos em diversos cenários lúdicos, marcando a experiência dos estudantes que levarão esses conhecimentos para toda a vida”, enfatiza Kistemann.“Os professores podem ousar e ir além do ensino tradicional vigente de matemática financeira, utilizando-se da metodologia de projetos, de modelagem e de investigação na sala de aula e fora dela”, orienta. Outra dica é explorar os produtos educacionais desenvolvidos nos mestrados profissionais em educação matemática desenvolvidos pelas universidades do país.
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A seguir, separamos 7 propostas de atividades pensadas em âmbito acadêmico e aplicadas à realidade da escola pública que podem inspirar professores de outras localidades. Confira!
1) Simular um orçamento familiar (5º ano do ensino fundamental)
Na dissertação “Possibilidades didáticas com Educação Financeira Escolar Crítica nos anos iniciais do ensino fundamental” (2020) do programa de pós-graduação em ensino de ciência e matemática da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Wilma Pereira Santos Faria propõe dividir a classe em grupos de cinco alunos que irão compor uma família. O objetivo é que eles organizem e proponham um orçamento familiar a partir das necessidades de um lar.
Inicialmente, a família deve refletir sobre suas próprias necessidades, considerando o número de pessoas e as funções fictícias de cada membro da família. É esperado nos orçamentos despesas com moradia; transporte; lazer; alimentação; educação; saúde; água e esgoto; energia; telefone, internet e tv.
Na sequência, os alunos receberam fichas de bens e serviços que poderiam compor o orçamento familiar (presentes na página 65 da dissertação). Sugestões como: “comer fora” (R$ 500); “levar marmita” (R$ 300); “prestação do apartamento” (R$ 600); “escola particular” (R$550); “plano de internet” (R$ 180) etc. Cada família registrará suas escolhas e justificativas em um papel.
Além disso, são sorteados os salários de cada família, que recebeu cédulas sem valor real para visualizarem a quantia do salário mensal e organizar suas despesas de acordo com os gastos do lar. O fechamento é realizado em uma roda de conversa para os alunos exporem sentimentos e saberes adquiridos com a dinâmica.
2) O caso da papelaria (5º ano do ensino fundamental)
Em sua dissertação, Faria também aplicou com a turma um material gratuito elaborado pelo Comitê Nacional de Educação Financeira (CONEF). Ele traz a história do aluno Chico e de sua família, que possui uma papelaria, cujas despesas com água, luz e papel aumentaram. Além disso, metade das moedas que usavam para troco sumiram. Chico decide, então, investigar para resolver o mistério
O caderno do professor, na página 32, traz o resumo da história e o fluxograma das diferentes possibilidades de percurso. Para guiar os alunos, o professor pode conhecer antecipadamente a rota menos adequada e a mais adequada e as tarefas propostas. Já o caderno do aluno, na página 84, traz um cartão no estilo RPG para os alunos anotarem as habilidades e dificuldades de Chico.
A história tem comandos do tipo “escolha o número X se você acha que o personagem está certo e o número Y se achar que ele está errado”, em que X e Y são números de trechos da continuação da trama contidos em cartões. A história pode ter desfechos diferentes de acordo com cada decisão tomada pelo grupo. Os alunos devem escolher por caminhos e apresentar suas escolhas e as consequências geradas.
3) Situação-problema: Black Friday (ensino médio)
No “Guia de Atividades de Educação Financeira e noções de Empreendedorismo na Educação de Jovens e Adultos (EJA)”, Luiz Paulo Xisto e Marco Aurélio Kistemann Jr trazem uma situação-problema envolvendo a Black Friday — campanha global de promoções — que pode ser adaptada ao ensino médio.
Para começar a atividade, apresente aos alunos o texto:
“A Black Friday tem origem nos EUA, na sexta feira depois do dia de ação de graças, quando lojas oferecem grandes descontos. Na situação-problema, um smartphone que custa R$ 3.000,00, está sendo anunciado no Black Friday à R$1800,00 à vista, ou em duas opções de pagamento: 3 prestações mensais de R$ 600,00 cada, ou em 5 prestações mensais de R$ 360,00 cada. Qual opção você escolheria, sabendo que você tem os R$ 2.000,00? Justifique”.
Ao longo da dinâmica, o professor pode enfatizar as diferenças de compras à vista e a prazo; do dinheiro ao longo do tempo quando poupado e aplicado; deixar os alunos compartilharem experiências de consumo; discutir propaganda enganosa e descontos inexistentes; cálculo de porcentagem e opções de pagamento.
“Pode-se também discutir o que acontece na Black Friday quando os anúncios de ofertas transmitem uma sensação de que tudo está mais barato e isso influencia as tomadas de decisão do indivíduo-consumidor, incentivando o consumo não pela necessidade”, orientam os autores.
4) Situações familiares e situações surpresa (ensino médio)
No “Guia para aulas de educação financeira no ensino médio”, Aline Reysuuy de Moraes propõe uma dinâmica em que grupos de alunos recebem um perfil de família e, depois, são sorteadas situações surpresas que podem abalar o orçamento do lar.
Para isso, os alunos devem ser divididos em até oito grupos e escolherão uma família. Cada família possui um cartão com o seu perfil, encontrados na página 26 do guia. Depois, cada grupo escolhe um número e nesse número consta uma situação surpresa. A ideia é que os alunos sintam a necessidade de fazer um planejamento financeiro para solucionar a situação ocorrida. Caso isso não ocorra, o professor irá induzir essa necessidade.
As situações envolvem diferentes temáticas: recebimento de herança, desemprego, falecimento da principal fonte de renda da família, endividamento de cartão de crédito, viagem em família, compra de um carro, assalto e elaborar uma festa.
5) Discutir relação entre dinheiro e felicidade (ensino fundamental 2 e ensino médio)
Proposta presente em “Tarefas para uma educação financeira: um estudo” de Daniela Harmuch, que sugere que os alunos discutam a relação entre dinheiro e felicidade. As orientações da tarefa se encontram na página 39.
Dispostos em círculo, os estudantes são convidados a escrever em uma única frase, primeiro, “o que é felicidade para você?” e, em seguida, “o que é dinheiro para você?”. Após as repostas, o professor pode trabalhar com as seguintes perguntas norteadoras: Dinheiro traz felicidade? Em que medida felicidade depende de dinheiro? É possível ser feliz sem dinheiro? É possível ter dinheiro e não ser feliz?
Na sequência, propõe-se um trecho do filme “À procura da felicidade”, no qual o personagem Chris Gardner (Will Smith) é um pai de família que enfrenta sérios problemas financeiros. A cena destacada é a conquista de um bom emprego após esforços para que isso aconteça.
Ao final, pode-se ainda debater as seguintes questões: quem tem muito dinheiro é competente? Quem tem muito dinheiro é porque armou alguma? Tem que ser rico para ser feliz? Estar triste é ser infeliz? Ou é possível ser feliz e ter momentos de tristezas? Os caminhos para ser feliz são simples e fáceis?
6) Produção de cartazes: como agir e poupar? (ensino fundamental 2 e ensino Médio)
Esta proposta também está presente em “Tarefas para uma educação financeira: um estudo”, de Daniela Harmuch. As orientações da tarefa se encontram na página 42.
Cada grupo de alunos apresentará em cartolina dicas de como proceder nas cinco situações distintas. A autora sugere como fundo musical as canções “Para que dinheiro” (Martinho da Vila) e “Beleza Pura” (Caetano Veloso).
Situação 1
O grupo deve pensar em estratégias de como fazer um programa bem legal com os amigos com pouco ou nenhum dinheiro. Escrever na cartolina a sugestão do grupo. Previsão de respostas: sair com colegas para um filme na casa de alguém, com pipocas e sucos; um jogo em algum lugar; buscar socializar com diferentes pessoas, etc.
Situação 2
Sua família resolve fazer um passeio. Que sugestões você poderia dar para que poupasse mais dinheiro? Previsão de respostas: buscar fazer lista de compras; comparar quantidade e preço; ir sem fome; buscar fazer análise de preços em outros mercados, etc.
Situação 3
Em sua casa, de que forma pode contribuir para poupar um pouco mais? Previsão de respostas: não desperdiçando luz, água, alimentos
Situação 4
Ao ganhar ou conseguir poupar uma determinada quantia em dinheiro, por exemplo, mil reais, o que você faria com ela? Previsão de respostas: aplicar o dinheiro, abrir uma poupança, reservar uma parcela para guardar, etc.
Situação 5
Que ações devem fazer diariamente para ter um bom emprego? Previsão de respostas: estudar, ler mais, ouvir os pais, buscar cursos etc.
7) Teatro para discutir taxas de juros (ensino médio)
Na dissertação “Atividades visando à inclusão da educação financeira no currículo de matemática no ensino básico”, apresentada na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Jonatas Campos Sarlo sugere a dramatização de uma situação de vida comum para falar sobre taxa de juros. As orientações se encontram na página 91. A atividade foi inspirada no livro “Educação Financeira nas Escolas – Bloco 1”.
Após um círculo de discussões sobre taxa de juros, os alunos receberam um texto e se organizaram em 4 grupos. Cada um foi convidado a interpretar uma narrativa.
Grupo 1 (7 integrantes)
A1 é mulher independente, trabalha nas maiores empresas do país, ganha muito bem e seu casamento é invejável, porém seu único problema é o impulso na hora das compras. A1 está indo para o trabalho quando passa em frente à loja de A2 e se encanta com o que vê.
Após essa narrativa, a dramatização conta a história de um casal que vê o seu relacionamento se desfazer por conta de endividamentos originados das compras por impulso, por parte da esposa, que os motivaram a recorrer a empréstimos com agiotas.
Grupo 2 (4 integrantes)
Contará a história de dois amigos de infância. Um identificado como o jovem que fica endividado e uma estudante empresária. Por posturas diferentes na administração dos recursos financeiros, os dois veem suas vidas tomarem rumos totalmente diferentes. Ele, um rapaz com muitas dívidas, tendo que recorrer a empréstimos bancários com taxas de juros altas e ela, uma moça sem dívidas e bem-sucedida. Além dessas personagens, a peça conta com o atendente do banco e um narrador.
Grupo 3 (4 alunos)
Mostrará a dinâmica dos repasses de aumentos ao consumidor. A dramatização conta com um narrador, identificado como agricultor, revendedor, caixa de supermercado e consumidor. A história se passa em dois cenários distintos: fazenda e supermercado. Os diálogos entre as personagens evidenciam inconformismo em virtude da alta dos preços.
Grupo 4 (6 integrantes)
A interpretação contou com personagens identificadas como pai, mãe, filho, filha, vendedora e gerente do banco. O enredo gira em torno de uma família em que todos os integrantes se deixam seduzir por promoções de lojas e um critica o outro, embora pratique a mesma atitude. A família entra em um estágio de decadência financeira e se vê obrigada a recorrer a empréstimos financeiros com juros altíssimos.
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