A partir de 2011, a comunidade LGBTQIAP+ conquistou direitos significativos, como o reconhecimento da união estável e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A maioria dessas conquistas foram estabelecidas por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e não por meio de leis aprovadas pelo Congresso Nacional.

O STF, como o mais alto tribunal do país, tem a autoridade de interpretar a Constituição Federal e decidir sobre a constitucionalidade das leis. Assim, suas decisões estabeleceram precedentes para a proteção dos direitos de grupos em vulnerabilidade social, como é o caso da comunidade LGBTQIAP+.

 “Os avanços vieram pelo poder judiciário porque nosso legislativo está cada vez mais fundamentalista e homofóbico, com políticos vetando direitos LGBTQIAP+”, analisa a advogada e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família Maria Berenice Dias.

Segundo o presidente da Comissão de Diversidade Sexual e Gênero da Ordem dos Advogados do Brasil do Pará (OAB-PA) João Jorge, além de haver poucas chances de se avançar nesse tema, há riscos de retrocessos, com projetos de lei proibindo direitos já assegurados.

“Houve casos de projetos de lei que propunham o casamento igualitário e que teve o texto desvirtuado pelo Congresso, de modo a proibi-lo”, lamenta Jorge.

Insegurança jurídica

Jorge explica que o fato de alguns direitos não serem garantidos por leis, mas pelo judiciário, pode causar insegurança.

“As decisões do Supremo não são imutáveis: se muda a composição da corte, decisões antigas podem ser passíveis de questionamento interno e externo”, revela.

Um exemplo ocorreu nos Estados Unidos, quando a corte de 2022 reverteu uma decisão histórica em defesa do direito ao aborto de 1973.

“Também me causa temor o aumento de pessoas fundamentalistas nos âmbitos menores de todo o judiciário”, alerta Dias.

A advogada também explica que, sem leis efetivas, é difícil promover políticas públicas de inclusão e afirmativas para essa população.

“No caso de pessoas trans, por exemplo, apenas chegar na escola e no mercado de trabalho não garante que eles consigam permanecer ali por toda a homotransfobia envolvida. Essas pessoas encontram resistências da instituição, dos colegas, dificuldade no transporte para chegar até seu destino. São necessárias políticas para que esses direitos sejam efetivados, e isso está relacionado a promulgação de leis”, reforça.

O que fazer quando um direito LGBTQIAP+ é desrespeitado?

Depende do tipo de direito que foi desrespeitado, explica Dias. No caso da LGBTQIAP+fobia, que foi equiparada pelo STF ao crime de racismo, é necessário realizar um boletim de ocorrência nas delegacias comuns ou nas voltadas para crimes de diversidade, que existem em alguns estados e municípios brasileiros.

“Porém, sabemos que ainda há discriminação pela própria autoridade policial”, conta. “Demais direitos podem exigir adentrar com uma ação judicial por danos morais”, completa.

Para divulgar os direitos LGBTQIA+, o STF lançou, em 2022, a cartilha “Direito das pessoas LGBTQIAP+: cadernos de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: concretizando direitos humanos”.

Confira, a seguir 11 direitos da pessoa LGBTQIAP+ conquistados.

1) Reconhecimento da união estável e do casamento homoafetivo

O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedentes Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.277, excluindo qualquer interpretação que impedia o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, atribuindo-lhes, ainda, as mesmas

regras e consequências jurídicas da união estável heterossexual.

“Em 2011, o Supremo reconheceu primeiro a união homoafetiva como entidade familiar. Como a Constituição disse que se deve facilitar a conversão da união estável para o casamento, este segundo direito foi reconhecido meses depois”, explica Dias.

“Como houve resistência de cartórios, o Conselho Nacional de Justiça [CNJ] emitiu a Resolução 175/2013 proibindo tratamento diferenciado e discriminatório no reconhecimento dessas uniões da população LGBTQIAP+”, completa.

2) Direito a herança

Em 2017, o STF decidiu que não deve existir discriminação em relacionamentos homossexuais nos direitos de herança e sucessão entre cônjuges e companheiros, como consta na decisão do Recurso Extraordinário nº 646.721.

“Isso trouxe segurança jurídica para pessoas LGBTQIAP+ que convivem maritalmente, contribuem para o sustento da família e construção do patrimônio em conjunto. Com isso, esclareceu direitos de sucessão e, no caso do casamento igualitário, de escolher o regime de partilha de bens”, explica Jorge.

“O que acontecia no passado era os pais e irmãos ficarem com a herança da pessoa LGBTQIAP+ que morria, desrespeitando o companheiro ou companheira desta. Não raro houve situações de familiares que haviam expulsado esse filho ou filha de casa por conta da sua orientação sexual e identidade de gênero, voltando apenas para reivindicar seus bens”, acrescenta.

3) Incluir parceiro (a) como dependente em plano de saúde

No Brasil, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) começou a regulamentar a inclusão de parceiros homossexuais em planos de saúde em 2010, quando publicou uma súmula normativa no diário oficial.

Essa resolução estabelece que os planos de saúde são obrigados a oferecer cobertura para o cônjuge ou companheiro do mesmo sexo, desde que haja uma união e dependência comprovada, assim como ocorre para casais heterossexuais.

4) Alteração do nome e sexo de pessoas transexuais no registro civil

O STF reconheceu aos transgêneros o direito à substituição de prenome e

sexo no registro civil, independentemente da cirurgia de transgenitalização ou da

realização de tratamentos hormonais – de acordo com o julgamento da ADI nº 4.275 e do RE nº 670.422. Em 2018, a Corregedoria do CNJ definiu que as alterações poderiam ser realizadas diretamente no cartório, sem necessidade de decisão judicial.

5) Direito das pessoas transgêneros de serem identificadas por seu nome social

O nome social é aquele pelo qual uma pessoa transgênero se identifica e é reconhecida nas esferas públicas e privadas, mesmo que não seja o mesmo nome que consta em seu registro civil. O Decreto nº 8.727/2016 garantiu que essas pessoas possam utilizar seu nome social mesmo se eles não estiverem em documentos oficiais, tendo assim sua dignidade respeitada. “O nome social deve ser respeitado mesmo se não conste em documentos oficiais. Isso porque é comum pessoas transgêneros que dependem da família e vivem em lares conservadores não poderem assumir a sua identidade de forma plena e modificar documentos”, esclarece Dias.

6) Criminalização da LGBTQIAP+fobia

O STF equiparou os efeitos da Lei 7.716/1989, a Lei do Crime Racial – que abordava os crimes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional –, à discriminação por orientação sexual e identidade de gênero até que se venha legislar a respeito.

“Na prática, isso ainda é pouco, porque a lei do racismo não era aplicada com rigor. Havia uma diferenciação entre racismo e injúria racial, sendo que apenas a segunda – que conta com penas mais brandas – era utilizada, o que gerava uma sensação de impunidade. Esse mesmo problema se estende agora para a punição de crimes contra pessoas LGBTQIAP+”, analisa Jorge.

Em 2023, o governo federal sancionou uma lei que equiparou a injúria racial ao racismo. “Por conta da equiparação, ainda temos que avaliar a efetividade disso para a população LGBTQIAP+. Na prática, ainda vemos a homotransfobia no futebol, nos programas de televisão, no plenário do Congresso, entre outros, sem punições”, complementa o advogado.

7) Doação de sangue por homossexuais – ADI nº 5.543

O STF declarou inconstitucional dispositivos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que impediam a doação de sangue por homossexuais. As medidas eram reflexo da associação de pessoas gays com a epidemia de HIV/Aids nos anos 1980 e 1990. Os ministros entenderam que era uma discriminação indevida por orientação sexual e ofendia a dignidade da pessoa humana e o direito à igualdade. “Práticas sexuais consideradas ‘de risco’ não são exclusivas de homossexuais”, lembra Dias.

8) Usar campo “sexo ignorado” no registro de nascimento de pessoas intersexo

Uma pessoa intersexo nasce com características físicas, genéticas ou hormonais que não correspondem às definições biológicas tradicionais de masculino (cromossomo XY) ou feminino (cromossomo XX).

Porém, a Declaração de Nascido Vivo (DNV) emitida pelo hospital e o registro civil de recém-nascidos só permitiam os gêneros masculino e feminino. Isso obrigava a criança a crescer com um gênero com o qual poderia não se identificar quando crescesse; sofrer uma cirurgia de readequação sexual imposta pela família ou médicos. “Como a construção de uma vagina é mais fácil, o que ocorria é que grande parte das crianças intersexos passavam a ser criadas como meninas, gênero com o qual poderiam não se identificar ao crescer, gerando diversos transtornos”, contextualiza Dias.

Os pais também eram obrigados a “escolher” o sexo da criança porque, sem a certidão de nascimento, há impedimento de acessar a licença-maternidade e outros serviços de saúde.

O Provimento n° 122/2021 do CNJ regulamentou o registro de pessoas intersexo, incluindo o termo “ignorado” no campo “sexo” dos registros civis. O registro pode ser alterado posteriormente, se necessário.

9) Adoção por casais homossexuais

Em 2015, o STF reconheceu o direito do casal Toni Reis e David Harrad de adotarem filhos, em um processo que já corria há 10 anos. Na ocasião, a ministra Carmen Lúcia lembrou que a Constituição Federal não fazia distinção entre casais heterossexuais e homossexuais, abrindo jurisprudência para que outros casais do mesmo gênero não sofressem discriminação ao adotar.

“Hoje é possível ter o nome dos dois pais ou das duas mães na certidão, ou até de três pessoas. Isso porque o que o direito vê é o melhor interesse da criança e a sua proteção caso algum dos responsáveis venha a falecer”, explica Jorge.

“Assegurar o nome do casal na certidão foi um passo importante porque, caso a pessoa responsável cujo nome não estava na certidão falecia, a criança ficava desprotegida porque não havia um vínculo jurídico”, explica Dias.

10) Detenção em presídio de acordo com identidade de gênero 

Em 2021, o STF decidiu que transexuais e travestis com identificação de gênero feminino devem ser consultados e poderão optar por cumprir pena em presídio feminino ou masculino, como decidiu o julgamento da ADPF 527). Se a pena for cumprida em estabelecimento prisional masculino, ela deve ocorrer em ala especial, que assegure a integridade do indivíduo.

11) Registro de filhos gerados por técnicas de reprodução assistida

O Provimento nº 63/2017 do CNJ explica que o registro de nascimento de filhos gerados por técnicas de reprodução assistida pode ser realizado diretamente em cartório de registro civil, sem intervenção da justiça. Dependendo do caso, são necessários documentos específicos, como declaração do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana; termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero (barriga solidária); entre outros.

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Crédito da imagem: rparobe – Getty Images

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