Desde meados dos anos 1950, tendo como ponto alto a composição “Navio Negreiro”, defendida pela Salgueiro, os desfiles no sambódromo do Rio de Janeiro são marcados por alguns sambas-enredo que contam a História do Brasil por um ponto de vista diferente daquele que é apresentado ainda hoje como oficial.
“Eles colocam uma perspectiva de que outros grupos também fazem parte da construção do país, porque, na narrativa hegemônica, muitas vezes, grupos indígenas, negros e populares não são enxergados com a sua devida contribuição para a história”, explica a doutoranda em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas Anna Cristina Almeida.
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Em seu trabalho, ela se debruçou sobre quase 1,6 mil sambas-enredo dos carnavais cariocas (entre 1939 e 2019). A visão da pesquisadora é corroborada pelo historiador, escritor e compositor Luiz Antonio Simas, autor de diversos livros sobre o tema.
Samba como instrumento pedagógico
“Há essa perspectiva do samba de enredo também ser um instrumento pedagógico de revisão de uma certa história oficial. É contar a história, por exemplo, da independência a partir da luta dos ‘Baianos do 2 de julho’; é você contar a história da abolição tirando a centralidade da figura da Princesa Isabel e colocando a centralidade numa luta que começa em Palmares, que passa por personagens fundamentais, como Tereza de Benguela, Luiza Mahin”, defende. No áudio, ambos citam sambas que têm essa proposta e porque devem ser vistos como instrumentos importantes de educação popular.
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Anna Cristina Almeida:
Cultura popular ela é a voz de desabafo, reivindicação, reafirmação… O carnaval, desde que surgiu, e o samba, desde que surgiu, eles expressam a voz de populações marginalizadas, que usam aquela música pra se posicionar socialmente.
Eu sou Anna Cristina Almeida, apaixonada, perdidamente, por samba-enredo; mestre e doutoranda em História, Políticas e Bens Culturais, pela FGV do Rio, e profissional de comunicação.
Luiz Antonio Simas:
Em 2022, muitos sambas estão trazendo esse aspecto. Até porque você está tendo um mergulho em enredos ligados à temática afro-brasileira. Então as escolas de samba elas são filhas das comunidades afro-cariocas, das culturas de diáspora. E essa conexão com esse universo simbólico é importantíssimo.
Sou Luiz Antonio Simas, escritor e historiador, professor; tenho diversos livros publicados, dentre eles, o “Dicionário da História Social do Samba”, com Nei Lopes.
Vinheta: Instituto Claro – Cidadania
Música de Reynaldo Bessa, instrumental, fica de fundo
Marcelo Abud:
Qual a importância de se conhecer as contribuições de negros, indígenas e populares para a História do Brasil? Os sambas-enredo fazem isso com frequência hoje, mas, segundo o historiador, escritor e especialista no tema, Luiz Antonio Simas, essas composições começaram relatando a história oficial.
Luiz Antonio Simas:
Então se a gente vai para as décadas de 40, décadas de 50,60, era uma certa história oficial que era relatada nos sambas. A partir de um certo momento, o samba-enredo começa a trazer uma postura mais crítica. Eu, por exemplo, antes da sala de aula, me inteirei sobre a história da Guerra de Canudos por causa de “Os Sertões”, o samba da Em Cima da Hora, de 1976.
“Os Sertões” (Edeor de Paula), samba-enredo da Em Cima da Hora, de 1976
Foi no século passado
No interior da Bahia
O homem revoltado com a sorte
Do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
Espalhando a rebeldia
Anna Cristina Almeida:
Pelo menos, desde a década de 80, a historiografia brasileira vem pensando como a gente pode dissociar uma narrativa que sempre foi eurocêntrica, hegemônica, e contar a perspectiva do perdedor, né, popularmente falando. Esse movimento que vem sendo feito academicamente ele já acontece há até mais tempo na cultura popular, uma vez que a gente tem, especificamente falando dos sambas-enredos, momentos e histórias e escolas e enredos que vão falar de personagens que não figuram dentro desta dita narrativa tradicional histórica; eles vão desconstruir a figura dos heróis da pátria ou dar outras perspectivas, outros olhares, sobre quem são esses heróis clássicos – eles colocam uma perspectiva de que outros grupos também fazem parte da construção do país, né?
Porque na narrativa hegemônica, muitas vezes, grupos indígenas, grupos negros, grupos populares, não são enxergados com a sua devida contribuição pra história, né?
Luiz Antonio Simas:
Então é essa perspectiva do samba de enredo também ser um instrumento pedagógico de revisão de uma certa história oficial, ‘escovando a história a contrapelo’, como dizia Walter Benjamin, é você contar a história, por exemplo, da Independência, a partir da luta dos ‘Baianos do 2 de julho’; é você contar a história da Abolição tirando a centralidade da figura da Princesa Isabel e colocando a centralidade numa luta que começa em Palmares, que passa por personagens fundamentais, como Tereza de Benguela, Luiza Mahin…
Então, o samba de enredo tem muito isso. Escola de samba é uma instituição de educação popular de altíssima qualidade. O Salgueiro contou a história de Palmares antes do livro didático, quando desfilou, em 1960, com o Quilombo dos Palmares.
Anna Cristina Almeida:
O Salgueiro ali nos idos de 50 e 60 teve um papel fundamental nesse sentido de apresentar os heróis e falar dos heróis, né? E isso começa com ‘O Navio Negreiro’, de 57, que é um samba maravilhoso!
Navio Negreiro (Armando Régis / Djalma Sabiá), samba-enredo da Salgueiro, de 1957
O navio onde os negros
Amontoados e acorrentados
Em cativeiro no porão da embarcação
Anna Cristina Almeida:
Um pouco mais adiante – e que eu acho superimportante – é o “33, Destino Dom Pedro II”, que é um samba de 84 e que ele vai falar sobre o cotidiano do trabalhador suburbano…
“33, Destino Dom Pedro II” (Guará / Jorginho Das Rosas), com Jovelina Perola Negra para escola “Em Cima da Hora” / 1984
Pra ganhar o pão
Acordar de manhã cedo
Caminhar pra estação
Pra chegar lá em D. Pedro
A tempo de bater cartão
Não é mole não
Não é mole não (Não é)
Com a inflação
Almejar as regalias
Do progresso da nação
Anna Cristina Almeida:
Esse samba é genial e ele vai colocar no centro do carnaval, do desfile e do debate, essas personagens que são encaradas com o mínimo destaque, na nossa sociedade: os vendedores, as cartomantes, os repentistas, o trabalhador, o trombadinha, enfim, os populares que fazem do Brasil o país que ele é e que construíram esse país.
E aí, esses sambas vão trazer essas personagens, vão contar essas histórias, e vão estabelecer um novo olhar e possibilitar que pessoas que, às vezes, não teriam acesso a determinadas informações (porque não estão academicamente envolvidas com a história do Brasil) possam também conhecer esse outro lado da história. É uma contribuição fundamental da cultura popular, né, que é transmitir conhecimento, transmitir ‘uma outra verdade’.
Histórias para Ninar Gente grande (Danilo Firmino / Deivid Domênico / Mamá / Márcio Bola / Ronie Oliveira / Tomaz Miranda), samba-enredo da Mangueira, de 2019
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês
(Mangueira) Mangueira tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Luiz Antonio Simas:
Mas quando a Mangueira fez, em 2019, “As histórias que a história não conta”, essa perspectiva de Mangueira trazia, portanto, um contraponto muito importante a certas versões muito cristalizadas da história do Brasil, que privilegiavam a oficialidade, né?
Anna Cristina Almeida:
E esse ano a gente também já tem sambas que caminham por essa mesma estrada e que já vêm trazendo essa mesma proposta… E eu amo o título do “Beija-Flor 22”, que é: ‘Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor’.
“Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor” (Diego Rosa / Manolo / Julio Assis / Beto Nega / Leo do Piso / J. Velloso) – samba-enredo da Beija-Flor, de 2022
Traz de volta o que a História escondeu
Foi-se o açoite e a chibata sucumbiu
Mas você não reconhece o que o negro construiu
Foi-se ao açoite e a chibata sucumbiu
E o meu povo ainda chora pelas balas de fuzil
Anna Cristina Almeida:
Todo o momento político-social do país vai se refletir em manifestações culturais. Na música isso é muito claro: Tropicália, o movimento Black Rio; as escolas de samba que atravessam governos ditatoriais, governos menos autoritários e que têm a possibilidade de falar sobre temas diferentes e de reivindicar possibilidades sociais e políticas, enfim…
Luiz Antonio Simas:
Então a gente tem enredos, em 2022, que estão indo nessa direção com muita felicidade, tanto no Grupo de Acesso – você tem um Império da Tijuca falando do Quilombo do Candeia; quando você tem Cubango, falando de Chica Xavier…
No acesso tem tanta coisa, é até difícil falar … Belford Roxo, contando a história do Maracatu, né, dos tambores silenciosos; Vigário Geral, contando a história da pequena África carioca…
E no Especial, é isso mesmo, a Grande Rio, falando de Exu; a Mocidade, falando de Oxóssi; a Mangueira, falando dela mesma a partir da perspectiva do Jamelão, do Cartola, do Delegado…
Música: Introdução de “Retrato de Drummond” (Reynaldo Bessa), fica de fundo
Marcelo Abud:
A cultura popular, em especial o samba-enredo, é uma importante forma de revisitar a história e, também, de trazer um ponto de vista crítico à política e sociedade de seu tempo.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.