Faça o download do podcast
Confira a transcrição do áudio
Marcelo Abud
Como as mulheres eram retratadas nas marchinhas carnavalescas dos anos 1930 a 1960? O Instituto Claro ouve duas especialistas no assunto para entender por que grande parte das composições desse período eram machistas.
Autora do musical “Sassaricando – e o Rio inventou a marchinha”, que trata dessas tradicionais composições, a historiadora Rosa Maria Araújo ouviu mais de 2.000 músicas para a pesquisa da peça, juntamente com o jornalista Sérgio Cabral.
“As marchinhas de carnaval tiveram seu auge entre as décadas de 1930 e 1960. E elas retratavam, é claro, as mulheres, os homens, a vida doméstica, o casamento… De uma forma muito preconceituosa, em geral”, diz.
Criadas na então capital federal, essas canções coincidem com a efervescência do cinema, do rádio e do teatro de revista, que ajudaram a propagar as músicas.
Embora as mulheres tivessem obtido conquistas sociais, como o direito ao voto e à inserção em algumas atividades profissionais, o direito de fala e de circulação nos espaços públicos era dedicado preferencialmente aos homens.
Para a professora de música e compositora de marchinhas feministas, Luisa Toller, também ouvida neste podcast, não apenas as canções de carnaval, mas os demais gêneros também tratavam a mulher como objeto. “Não é muito diferente do que tem no resto da produção popular. Tem muito samba-canção, música caipira, tangos, boleros que têm um conteúdo machista”.
No áudio, Rosa e Luisa analisam algumas marchinhas e ressaltam que elas servem como crônicas para que se entenda a sociedade da época em que foram concebidas. “Tem muita coisa falando sobre política, sobre comportamento social e refletindo também pensamentos que são super preconceituosos”, explica Toller.
Para a compositora, “hoje em dia quando a gente fala que uma coisa é machista, a gente já tem que superar essa ideia de que isso é uma ofensa. É uma constatação! E eu acho que é muito bom que a gente consiga mudar e refletir sobre as coisas que a gente canta, fala e faz.”
Araújo afirma que em vez de serem “censuradas”, as letras machistas e homofóbicas servem como provas do preconceito, o que não acontece se as canções forem “apagadas”. “Acho que o importante é a gente saber que elas são fruto de uma época e que isso mudou, que nós passamos a ter consciência de todos os preconceitos e que o preconceito é nocivo, está errado.”
Sobre as composições atuais, Rosa Maria Araújo avalia que “a música produzida hoje é menos preconceituosa, na sua maioria. Claro que você tem algumas que ainda são muito grosseiras. Mas há outras que são plenamente feministas, que respeitam todas as preferências sexuais e que tratam disso com muita naturalidade”, conclui.
Crédito da imagem principal: RebecaMello – iStock
Transcrição de áudio:
Introdução instrumental da marchinha “Abre Alas” (J. Piedade, J. Faraj), com Jaime Brito, de fundo.
Rosa Maria Araújo:
A gente deve ver as marchinhas produzidas neste período com os olhos de época. Você não tinha a noção do politicamente correto que nós temos hoje.
Rosa Maria Araújo:
Rosa Maria Araújo, historiadora, autora do musical “Sassaricando: e o Rio inventou a marchinha”, carioca e moradora do Rio de Janeiro.
Luisa Toller:
O conteúdo machista que tem nas marchinhas não é super diferente do que tem no resto da música popular. Tem muito samba-canção, música caipira, boleros que têm um conteúdo machista…
Luisa Toller:
Meu nome é Luisa Toller. Com as marchinhas, a gente toca com o grupo “Vozeiral”. Também toco no “Bolerinho”, “Meia Dúzia de 3 ou 4”. E sou professora e acadêmica.
Neste podcast, o Instituto Claro ouve duas estudiosas do assunto para saber como as marchinhas de outros carnavais devem ser analisadas nos dias de hoje.
Vinheta: “Instituto Claro – Cidadania”
Marchinha “Abre Alas”, de fundo
Marcelo Abud:
A partir dos anos 1930, o Brasil vive a efervescência do rádio e do teatro de revista. Por outro lado, embora as mulheres tivessem obtido conquistas sociais, como o direito ao voto e à inserção em algumas atividades profissionais, a sociedade era conservadora.
É nesse contexto que as marchinhas de carnaval ganham espaço.
Música: “Abre Alas” (J. Piedade, J. Faraj), com Jaime Brito.
“Ó abre alas / Que eu quero passar”
As marchinhas de carnaval, que retratam muito bem a história urbana do Rio de Janeiro, começaram a ser produzidas no final dos anos 20. E elas retratavam, claro, as mulheres, os homens, a vida doméstica, o casamento e de uma forma muito preconceituosa, em geral.
Música: “Abre Alas” (J. Piedade, J. Faraj), com Jaime Brito.
“Peço licença / Pra poder desabafar”
Luisa Toller:
É uma forma de você colocar o humor e fazer uma crítica cronista da sociedade. Dentro das marchinhas tem muitas coisas falando sobre política, sobre comportamento social e refletindo também pensamentos que são super preconceituosos. Na época, fazer piada com mulheres ou o preconceito racial era super comum e tinha um grande humor nisso, não é?
Rosa Maria Araújo:
Elas realmente falam absurdos, são machistas, são preconceituosas, mas não tinham esta noção tão clara. Em toda a música brasileira, quer dizer, Amélia, do Mário Lago… que era um homem muito avançado e progressista, e fez Amélia…
Música: “Ai, que saudades da Amélia” (Ataulfo Alves e Mário Lago), com Nelson Gonçalves
“Nunca vi fazer tanta exigência / Nem fazer o que você me faz / Você não sabe o que é consciência / Não vê que eu sou um pobre rapaz”
Marcelo Abud:
Luisa concorda com o fato de que outros gêneros musicais produzidos no Brasil, entre os anos 1930 e 1960, eram machistas.
Luisa Toller:
Só que geralmente eles falam mais dos crimes passionais. E as marchinhas, como têm um conteúdo de humor, aí vão mais pra essa coisa de mandar a mulher calar a boca, de bater na mulher.
Música: “Dá Nela” (Ary Barroso), com Francisco Alves
“Esta mulher / Há muito tempo me provoca / Dá nela! Dá nela! / É perigosa / Fala mais que pata choca / Dá nela! Dá nela!”
Rosa Maria Araújo:
Elas eram tratadas realmente como objeto. Até o início da República, a mulher não tinha cidadania, até o código civil de 1890. Quer dizer, a mulher dependia do pai, depois do marido, se não do irmão. A mulher não trabalhava fora. A mulher ‘do povo’ sempre esteve nas ruas, mas a mulher das classes médias começou a ir para a rua, para trabalhar… as crianças para frequentarem a escola, para terem hospital, já no início da República.
Música: “Sassaricando” (Luiz Antonio / Oldemar Magalhães / Zé Mario), com Virginia Lane, de fundo
Marcelo Abud:
Rosa Maria Araújo é autora do musical Sassaricando, que trata das tradicionais marchinhas e rodou o Brasil entre 2007 e 2017. Juntamente com o jornalista Sérgio Cabral, ela ouviu mais de 2.000 marchinhas compostas entre o final dos anos 1920 e 1970 para a pesquisa da peça. Em um dos blocos, Sassaricando aborda justamente uma das visões que as marchinhas traziam das mulheres à época.
Rosa Maria Araújo:
Então, é no início, nos primeiros blocos, que nós tratamos do comportamento e depois da vida doméstica, família e casamento e que aparecem muito as mulheres. A primeira marchinha do Sassaricando, que se chama “A Água lava tudo”, trata das meninas levadas, namoradeiras, que todo mundo falava mal delas.
Música: “A Água lava tudo” (Jorge Gonçalves / Paquito / Romeu Gentil), com Emilinha Borba
“Já vieram me contar / Que me viram por aí / Em lugar tão diferente / A água lava lava lava tudo, / A água só não lava, / A língua dessa gente”
Rosa Maria Araújo:
Depois, uma marchinha do Lamartine Babo, chamada “Aí, Hein!” (cantarola) “pensas que não sei, toma cuidado, pois um dia eu fiz o mesmo e me estrepei”, porque é uma menina que namora por toda a praia de Copacabana, do posto 6 até o Leme. São todas brincando com essas meninas levadas.
Marcelo Abud:
Para a historiadora, as composições devem ser estudadas e contextualizadas.
Rosa Maria Araújo:
A história deve ser vista sempre com uma visão do presente. A gente olha para o passado com a nossa visão de presente, mas a gente não mexe no passado. Acho que o importante é a gente saber que elas são fruto de uma época e que isso mudou, que nós passamos a ter consciência de todos os preconceitos e que o preconceito é nocivo, está errado. Mas nós não vamos apagar o passado, nós não vamos banir as marchinhas e fazer outras letras, porque você não pode falar dos preconceitos ou do machismo.
Luisa Toller:
Tudo isso é apenas um reflexo. A gente sempre fez muita piada com isso. Nos últimos anos, a gente tá conseguindo conversar mais e discutir no dia a dia coisas que não se fazem, nem se falam mais e aí acaba refletindo nas músicas.
Rosa Maria Araújo:
Sempre que a gente estuda, analisa, investiga a gente tem possibilidade de transformar o presente, de ter novas perspectivas e melhorar. Nós, hoje em dia, temos uma visão muito mais progressista. Você vê como se condena a visão de que menina é diferente de menino, em termos de direitos.
Marcelo Abud:
Luisa Toller é pesquisadora, cantora e compositora de marchinhas carnavalescas. Por conhecer a história do estilo, hoje faz letras feministas, gravadas pelo grupo “Vozeiral”.
Luisa Toller:
E aí as marchinhas que eu fiz, a primeira chama “Mulheres na Marcha”…
Música: “Mulheres na marcha” (Luisa Toller), com Vozeiral
“No carnaval / O homem sai vestido de mulher / Mas não conhece / A dor e a delícia de ser o que ela é”
Luisa Toller:
…a segunda se chama “Chiquinha Toca Uma”, que é em homenagem à Chiquinha Gonzaga…
Música “Chiquinha Toca uma” (Luisa Toller), com Vozeiral
“Chiquinha / Pianista, feminista / Tocava uma / Tocava uma / Tocava uma / Tocava uma”
Luisa Toller:
…e a que fez muito sucesso que eu fiz no passado que é a “Tomara que caia”, que acabou viralizando, eu acho que as pessoas gostaram muito porque ela refletia um super momento político e ainda reflete.
Música: “Tomara que caia” (Luiza Toller), com Vozeiral
“Mulheres neste carnaval / Vestem de sul a norte / Um tomara que caia / Tomara que caia (o patriarcado) / Tomara que caia”
Trecho instrumental de marchinha de carnaval permanece de fundo
Marcelo Abud:
Ouvir as marchinhas de outros carnavais hoje, com os avanços sociais do presente é um exercício que nos faz conhecer e refletir sobre a história do Brasil. Aliás, essa continua a ser escrita, revisada e cantada nas novas composições.
Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.
Atualizada em: 16/3/2020 às 20h33