Historiador, escritor, compositor e professor do ensino médio, Luiz Antônio Simas é uma das referências na pesquisa sobre o samba e a história do Rio de Janeiro. Segundo ele, o gênero musical e suas letras podem ser utilizados em sala de aula como documento. “Mas nenhum documento fala sozinho, demandando conjecturas”, explica. “Não é trabalhá-lo como mera ilustração. É o seu diálogo com outros documentos que ajuda a compreender de forma mais ampla um fato social”, acrescenta.

Em entrevista ao Instituto Claro, ele exemplifica como o samba pode ser abordado na escola e quais são as relações sociais e históricas que mais se destacam. Fala também sobre as ligações com a sociologia e a filosofia e o papel do carnaval de rua na ocupação das cidades.

Por que é importante discutir o samba com alunos do ensino médio?

Luiz Antônio Simas: O samba é documento e testemunho do tempo. Especialmente no Brasil, em que os canais institucionais de participação na vida pública foram negados à maioria da população. Assim, você passa a ter pessoas sem voz no parlamento, universidades ou escolas que demonstram as suas visões de mundo, perspectivas do cotidiano e anseios por meio da música popular.

É possível associar o samba a questões históricas e sociais?

Simas: Sim. Eu trabalho o samba na educação como o documento de uma época. Da mesma forma que a Carta de Getúlio Vargas, por exemplo. Porém, ao mesmo tempo em que ele retrata o período em que foi composto, em certa medida, também é construtor desse tempo, em uma relação dialética. Óbvio que nenhum documento fala sozinho, demandando conjecturas. Não dá para mostrar um samba ao aluno e dizer “a época está aí”. Ele entra como um elemento a mais para análise conjuntural. É um vestígio poderoso para pensar a história. O mesmo acontece com questões sociais: a partir dele é possível tecer conjectura sobre o corpo social. Entendido como documento que é influenciado e influencia esse contexto.

Como as questões de classe, raça e religião se fazem presente no samba, desde sua origem?

Simas: O samba é cultura de diáspora. Aqui, é preciso diferenciar diáspora e cultura de diáspora. A primeira é fenômeno de desagregação, quebra de identidade, despertencimento e diluição de laços sociais. É uma experiência simbólica de morte. Já a cultura de diáspora é gregária e comunitária. Exemplos são as religiões como candomblé e umbanda. São experiências de reconstrução de laços, de pertencimento, de sociabilidade, proteção social e de identidade. No Brasil, o cruzamento entre raça e classe é evidente. A pobreza aqui tem cor. Assim, podem-se tecer conjecturas ligadas ao samba de forma efetiva.

O carnaval e o samba também foram importantes nas ocupações das cidades?

Simas: Estudo o Rio de Janeiro e costumo dizer, provocativamente, que não foi esta cidade que criou o samba urbano. Foi este, desenvolvido a partir da cidade nova e do Estácio, que criou o Rio de Janeiro. Por exemplo, a ocupação dos bairros foi acompanhada de sociabilidades construídas a partir do samba. As escolas de samba também são elementos constituintes da identidade de bairro. Por exemplo, é impossível falar do bairro Oswaldo Cruz sem citar a Portela, ou do Morro da Mangueira sem falar da Estação Primeira de Mangueira.

Quais temas da sociologia podem ser explorados a partir do samba?

Simas: O samba é um fato social completo. Por meio dele, é possível apontar questões ligadas ao machismo, misoginia, racismo, intolerância religiosa e violência policial. Ele é testemunha de tudo isso, registrado em suas composições. Exemplos: “Delegado Chico Palha”, fala sobre violência policial. “Mulato calado” aborda a violência no Morro de Mangueira. Submissão da mulher é tema de “Amélia”. Precarização do trabalhador urbano está em “Salário Mínimo”. “Batuque na cozinha” é o cotidiano das populações negras na Primeira República. Para citar apenas alguns.

E no campo da filosofia?

Simas: Apesar de não ser a minha área, alguns problemas da filosofia estão expostos em sambas. A canção “Chico Brito” diz: “se o homem nasceu bom, e bom não se conservou; a culpa é da sociedade, que o transformou”. Esta pode ser utilizada para discutir questões fundamentais de Rousseau, como o bom selvagem. O homem nasce bom e é deturpado pela sociedade.

Ao que o professor deve se atentar ao apresentar um samba à turma?

Simas: O samba não pode ser tomado como produto acabado, que explica o tempo e a sociedade. Ele pode ser um elemento impulsionador para que essas questões aconteçam. Então, é importante se atentar ao cruzamento das informações e de documentações. Não dá para trabalhar o samba sem tecer conexões entre ele, o corpo social e o espaço em que foi produzido. Não é trabalhá-lo como mera ilustração. É o seu diálogo com outros documentos que ajuda a compreender de forma mais ampla um fato social.

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